
O crime de racismo sofrido pela ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral, Vera Lúcia Santana, na semana ada, apenas confirma a violência que a população negra sofre diariamente, nos mais diversos ambientes. É o que mostra o relatório Mais dados, mais saúde, da Vital Strategies e da Umane, com apoio institucional do Ministério da Igualdade Racial. Pela pesquisa, de 10 tipos de discriminação pela cor da pele, as mulheres negras são as que dizem sofrer a maior variedade de preconceitos.
O levantamento mostra que as negras são o grupo que mais acusou dois ou mais motivos (72% do total) das discriminações sofridas. Em seguida, estão os homens negros: um total de 62,1% afirma ter sofrido dois ou mais tipos de preconceito.
O relatório traz 2.458 registros, coletados entre agosto e setembro de 2024, e os participantes são residentes das cinco regiões do país, agrupados por local de moradia, gênero e região. Foi aplicada a Escala de Discriminação Cotidiana a partir da pergunta: "No seu dia a dia, com qual frequência essas coisas a seguir acontecem com você?". Foram apresentadas 10 situações de discriminação e, para cada uma, quatro opções de resposta: nunca, raramente, frequentemente e sempre.
Os indivíduos negros e pardos reconhecem, com maior frequência, os tipos de discriminação apresentadas. A população negra, especificamente, lidera em todas as opções: são tratados com menos gentileza, com menos respeito, como se não fossem inteligentes, como se (não negros) tivessem medo deles, como se (não negros) fossem melhores do que eles, recebem atendimento pior, acham que são desonestos, são xingados, ameaçados e seguidos.
Apenas nas respostas "raramente", "frequentemente" e "sempre" para os negros, foram mais frequentes as percepções de discriminação nos casos de serem tratados com menos respeito (92,5%), com menos gentileza (84,7%), serem seguidos em lojas (80,7%), receberem um atendimento pior (79,9%) e não negros agindo como se eles não fossem inteligentes (74,3%).
A população parda, por sua vez, afirmou perceber mais o preconceito contra eles nos casos de serem tratados com menos gentileza (68,2%), tratados com menos respeito (60,1%) e quando os não pardos agem como se fossem melhores que eles (59,5%).
Ao perguntarem aos entrevistados sobre as possíveis razões a que atribuiriam a discriminação, as justificativas mais comuns entre os que se identificam como negros e pardos foram: por conta da raça, educação ou renda; aparência física; ancestralidade ou local de origem. A pesquisa levantou, ainda, que 84% dos negros ouvidos relataram alguma forma de discriminação racial. Entre os pardos, o percentual foi de 10,8%.
Ministério, OAB e AGU respaldam ministra
A ministra Vera Lúcia Santana — discriminada por funcionários da recepção e da segurança do Centro Empresarial da Confederação Nacional do Comércio (CNC) pouco antes de participar de uma palestra — recebeu, ontem, mais manifestações de apoio. O Ministério da Igualdade Racial, por meio de nota enviada ao Correio, frisou que "barrar pessoas negras nos espaços, especialmente os de poder, é uma das manifestações mais comuns e perversas do racismo, que impõe tratamentos desiguais baseados na cor da pele. Racismo é crime".
"A pasta irá acompanhar de perto as investigações em curso pela Comissão de Ética da Presidência da República e pela Advocacia-Geral da União (AGU) sobre o caso", assegura a nota.
Já a Advocacia-Geral da União (AGU), que havia disponibilizado seu auditório para a realização do seminário do qual Vera Lúcia era palestrante, se posicionou por meio de um ofício assinado pelo ministro Jorge Messias repudiando o caso e com um pedido de desculpas formal à ministra. A AGU também acionou a Polícia Federal (PF) para que investigue o episódio.
Além de se solidarizar com a ministra, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) salientou que o episódio revela uma afronta "não apenas à dignidade da ministra Vera Lúcia, mas para os princípios fundamentais que regem a istração pública e a convivência democrática".
A seccional do Distrito Federal da OAB afirmou que o caso da ministra demonstra a necessidade de constante vigilância pela sociedade. E salientou que, dentro de suas atribuições constitucionais, "irá cobrar os responsáveis por medidas efetivas no combate à discriminação".
Mortes brutais
O Atlas da Violência 2025 mostra que, em 2023, 2.662 mulheres negras foram vítimas de homicídio, o que representa 68,2% do total de homicídios femininos. Isso aponta uma taxa de 4,3 mulheres negras assassinadas para cada 100 mil habitantes.
Em 10 anos (2013 a 2023), a pesquisa mostra que 30.980 negras foram assassinadas, o que representa 67,1% do total de vítimas no período. Na taxa de mortes para cada 100 mil habitantes, representa uma queda de 20,4%, saindo de 5,4 mortes, em 2013, para 4,3, em 2023. Nos últimos cinco anos, porém, a queda é menor: apenas 17,3% e, no último ano analisado (2022-2023), foi registrado um aumento de 2,4%.
Juliana Brandão, pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), ressalta que, em 2023, uma pessoa negra tinha 2,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio do que uma não negra, o que representa um aumento de 15,6% em relação ao cenário de 2013. A partir do corte de gênero e do aumento de homicídios registrados, ela destaca o "risco relativo" — uma medida que vai permitir comparar a probabilidade de um evento acontecer em dois grupos diferentes.
O Atlas traz, também, que em 12 estados, os riscos para as mulheres negras é ainda mais grave do que o cenário nacional. O relatório destaca Alagoas, onde houve 28,5 vezes mais assassinatos de negras do que as não negras. Em seguida, estão o Piauí — onde o risco relativo ficou em 4,2 vezes —, e o Rio Grande do Norte, com 4,0 vezes.
"O caso da ministra Vera Lúcia evidencia a desigualdade e o racismo estrutural. Quando a gente olha para a realidade que os dados do Atlas trazem, a gente vê que a população negra enfrenta maiores vulnerabilidades ao longo da vida. Mesmo a alta escolaridade e a presença em espaços de poder não são suficientes para afastar o racismo", lamenta Juliana.
*Estagiário sob a supervisão de Fabio GrecchiSaiba Mais