A dieta cetogênica, popularmente conhecida como dieta “keto”, ganhou destaque mundial por sua eficácia na perda de peso. No entanto, sua origem e suas aplicações mais profundas e terapêuticas vão muito além da estética, especialmente no campo das condições neurológicas. A dieta keto é um plano alimentar que restringe drasticamente o consumo de carboidratos (geralmente para menos de 50g/dia), aumentando o consumo de gorduras e moderando a ingestão de proteínas. Essa composição leva o corpo a um estado metabólico chamado cetose nutricional.
Na cetose, o corpo, sem glicose suficiente para energia, a a queimar gordura, produzindo corpos cetônicos (beta-hidroxibutirato, acetoacetato e acetona). Esses corpos cetônicos tornam-se a principal fonte de energia para o cérebro e outros tecidos. Essa mudança metabólica fundamental é o cerne das aplicações terapêuticas da dieta cetogênica, especialmente em distúrbios neurológicos. Embora poderosa, seu uso nesse contexto é cercado por mitos e verdades que precisam ser compreendidos para uma aplicação segura e eficaz, sempre sob supervisão profissional.
O que é cetose nutricional e como o cérebro a utiliza?

A cetose nutricional é um estado metabólico natural em que o corpo, na ausência de carboidratos suficientes, a a utilizar a gordura como sua principal fonte de energia, produzindo corpos cetônicos. Este processo é diferente da cetoacidose diabética, uma condição perigosa em diabéticos descompensados. Na cetose nutricional, os níveis de corpos cetônicos são controlados e seguros.
- Combustível para o cérebro: Embora o cérebro prefira glicose, os corpos cetônicos, especialmente o beta-hidroxibutirato, podem atravessar a barreira hematoencefálica e ser usados de forma eficiente como combustível neuronal. Em algumas condições neurológicas, os cérebros podem ter dificuldade em metabolizar a glicose, e os corpos cetônicos oferecem uma fonte alternativa de energia.
- Mecanismos de ação no cérebro: Os benefícios terapêuticos na neurologia são atribuídos a múltiplos mecanismos:
- Melhora da bioenergética cerebral: Fornecendo uma fonte de energia mais eficiente para neurônios disfuncionais.
- Propriedades neuroprotetoras: Os corpos cetônicos têm ação antioxidante e anti-inflamatória, protegendo os neurônios do estresse oxidativo e da inflamação.
- Modulação de neurotransmissores: Podem influenciar a produção e o equilíbrio de neurotransmissores, como o GABA (neurotransmissor inibitório) e o glutamato (neurotransmissor excitatório), o que é relevante para distúrbios de excitabilidade neuronal.
- Aumento da atividade mitocondrial: Melhoram a função das mitocôndrias (centrais de energia das células), que muitas vezes estão disfuncionais em doenças neurológicas.
Essa mudança metabólica fundamental é a base do potencial terapêutico da dieta cetogênica.
Mitos e verdades: dieta cetogênica e epilepsia refratária
O uso da dieta cetogênica para epilepsia refratária é sua aplicação terapêutica mais antiga e bem estabelecida, mas ainda há mitos.
- Mito 1: “A dieta cetogênica é uma cura para a epilepsia.”
- Verdade: Não. A dieta cetogênica é um tratamento eficaz para a epilepsia refratária (quando as crises não respondem a medicamentos), ajudando a controlar as crises em muitos pacientes. Ela pode reduzir a frequência e a intensidade das crises, e em alguns casos, levar à remissão, mas não é uma cura. A interrupção da dieta pode levar ao retorno das crises.
- Mito 2: “Funciona para todos os tipos de epilepsia.”
- Verdade: A dieta é mais eficaz para certos tipos de epilepsia, especialmente as síndromes epilépticas infantis graves (como a Síndrome de Dravet ou Lennox-Gastaut). Sua eficácia em epilepsias focais em adultos é menos consistente, mas ainda é uma opção.
- Mito 3: “É só parar de comer carboidratos e começar.”
- Verdade: Para epilepsia, a dieta cetogênica é altamente restritiva e precisa. Geralmente, é uma dieta de 4:1 (4 partes de gordura para 1 parte de carboidrato + proteína combinados) ou 3:1, exigindo medição precisa dos alimentos e suplementação para evitar deficiências nutricionais. Isso deve ser feito sob a supervisão de uma equipe médica multidisciplinar (neurologista, nutricionista, etc.), pois o controle metabólico é crítico.
O sucesso da dieta na epilepsia está bem documentado, mas requer adesão rigorosa e acompanhamento profissional.
Aplicações emergentes e cautela: outras condições neurológicas
Além da epilepsia, a dieta cetogênica está sendo investigada para outras condições neurológicas, embora a ciência ainda esteja em fases mais iniciais para muitas delas. É importante ter cautela e evitar promessas de “cura”.
- Doença de Alzheimer: Estudos preliminares sugerem que a dieta pode melhorar a função cognitiva em alguns pacientes, possivelmente ao fornecer uma fonte de energia alternativa para cérebros com resistência à insulina cerebral. A pesquisa ainda está em andamento.
- Doença de Parkinson: Há investigações sobre seu potencial para melhorar sintomas motores e não motores, como fadiga.
- Esclerose Múltipla (EM): A dieta pode ter efeitos anti-inflamatórios e neuroprotetores que poderiam ser benéficos, mas a evidência ainda é limitada.
- Enxaqueca: Alguns pacientes relatam redução na frequência e intensidade das crises. Acredita-se que os corpos cetônicos possam influenciar a excitabilidade neuronal.
- Lesão Cerebral Traumática (LCT) e Acidente Vascular Cerebral (AVC): Pesquisas pré-clínicas e estudos iniciais em humanos exploram o potencial neuroprotetor dos corpos cetônicos na recuperação.
Para essas condições, a dieta cetogênica é uma abordagem experimental ou complementar, não um tratamento padrão. Nunca substitua tratamentos médicos convencionais por dietas sem orientação profissional.
Como seguir a dieta cetogênica com segurança e acompanhamento profissional?
A dieta cetogênica, especialmente quando usada para condições neurológicas, deve ser seguida com extrema segurança e acompanhamento profissional.
- Avaliação Médica Completa: Antes de iniciar, um médico (neurologista, endocrinologista) deve realizar uma avaliação completa da sua saúde, histórico médico e medicamentos em uso. Pessoas com certas condições (doenças renais, hepáticas, pancreáticas, problemas de vesícula biliar) podem não ser candidatas.
- Acompanhamento Multidisciplinar: É crucial ser acompanhado por um nutricionista experiente em dietas cetogênicas terapêuticas. Eles ajudarão a planejar o cardápio, garantir a ingestão adequada de nutrientes (vitaminas, minerais, fibras), monitorar a cetose e gerenciar possíveis efeitos colaterais. O neurologista continuará monitorando a condição neurológica.
- Dieta Rigorosa: Para fins terapêuticos, a dieta cetogênica é muito mais rigorosa que as versões populares para perda de peso. A contagem de carboidratos e a proporção de macronutrientes são essenciais.
- Monitoramento de Corpos Cetônicos: A cetose deve ser monitorada através de testes de urina, sangue ou hálito para garantir que o corpo esteja no estado metabólico desejado.
- Efeitos Colaterais Potenciais: Os efeitos colaterais iniciais (“gripe keto” – fadiga, dor de cabeça) são comuns. Outros podem incluir constipação, deficiências nutricionais (necessidade de suplementação), cálculos renais e alterações nos lipídios sanguíneos. O profissional saberá como gerenciá-los.
- Progressão e Reintrodução: A dieta pode ser mantida a longo prazo em alguns casos, enquanto em outros, pode ser usada por um período e gradualmente reintroduzida a carboidratos sob orientação.
A dieta cetogênica para condições neurológicas é uma ferramenta poderosa, mas complexa. Seu uso seguro e eficaz exige conhecimento aprofundado e uma parceria contínua com profissionais de saúde qualificados. Não é uma dieta para autoaplicação quando o objetivo é terapêutico.