
Brasília recebe, neste fim de semana, um congresso que vai discutir o transtorno do espectro autista (TEA). Um dos palestrantes será o psicólogo Gustavo Tozzi, diretor do Instituto Ninar, que participou, ontem, do programa CB.Saúde — parceria do Correio Braziliense e da TV Brasília. Às jornalistas Carmen Souza e Sibele Negromonte, o especialista comentou sobre diagnóstico tardio, aumento de casos e possível defasagem nos números de pessoas diagnosticadas.
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A que o senhor atribui o aumento considerável de diagnósticos de TEA nos últimos anos?
O primeiro fator é a mudança nos critérios de diagnósticos, em especial de 2012 para 2013, quando tivemos o lançamento do manual estatístico dos transtornos mentais e psiquiátricos. Além disso, os profissionais estão mais bem preparados para fazer o diagnóstico. Até 2012, quem recebia o diagnóstico de autismo atendia a critérios mais s.
Há também um aumento de diagnósticos em adultos?
O que tem acontecido é que muitos adultos estão recebendo diagnósticos tardios. São pessoas que tangenciavam alguns critérios, mas não tinham comportamentos suficientes para poder compor aquilo que se entendia como autismo, àquela época. Eram chamados de transtornos globais do desenvolvimento. Hoje, a gente fala em transtorno do espectro autista. Então, muitas pessoas estão recebendo diagnósticos tardios, pois houve a mudança na compreensão.
A gente pode falar que houve um aumento de casos, levando em conta os aspectos genéticos e estilo de vida?
A literatura relaciona até 90% dos casos como herdáveis. Então, temos uma condição genética envolvida. Os outros 10% estão ligados à idade parental, isso serve tanto para as mulheres quanto para os homens. Alguns estudos colocam fatores estressores ambientais (poluentes e metais pesados) influenciando para essa mutação genética. Também há uma questão do uso de medicamentos, que hoje são proibidos durante a gestação, talidomida (tratamento de lúpus) e ácido valproico (tratamento de epilepsia). É importante que, durante o pré-natal, isso seja controlado.
O último Censo do IBGE apontou que o Brasil tem 2,4 milhões de pessoas com TEA. É possível que esse número seja maior?
É possível imaginarmos isso. Dados norte-americanos mais recentes colocam um caso para cada 31 nascimentos. Sobre o Censo, estamos falando de dados que foram colhidos em 2022 e que se aproximam muito dos dados da penúltima pesquisa norte-americana. Por isso, é possível, sim, que a gente tenha um número ainda maior.
Como é feito o diagnóstico e quanto tempo demora?
A interdisciplinaridade é algo muito importante. Estamos falando de um transtorno que afeta diferentes áreas: comunicação, compreensão e aspectos sensoriais. Então, essa avaliação clínica precisa de múltiplos olhares, sem sombra de dúvidas.
Falando sobre adolescentes e adultos, a gente pode falar sobre sinais de alerta para que uma pessoa procure o diagnóstico?
Temos pessoas autistas ativistas, divulgando informações de qualidade nas redes sociais, fazendo com que alguém se identifique com algum dos sintomas. Além disso, muitos pais recebem o diagnóstico depois que o filho recebe o dele. Na vida adulta, isso se manifesta por meio da dificuldade social, como não conseguir fazer ou manter amizades, entender jogos sociais (algumas brincadeiras), ser muito literal com algumas interpretações e esgotar a "bateria social" rapidamente. Além disso, são pessoas que podem falhar na comunicação, não compreendendo tudo aquilo que está sendo dito nas entrelinhas e dar uma interpretação mais coerente no contexto social.
Em termos de tratamentos, o que pode ser feito pela pessoa que recebe o diagnóstico tardio?
Temos um acompanhamento medicamentoso, pois são pessoas que podem ter distúrbio do sono e estar mais vulneráveis a desenvolver uma depressão ou crises de ansiedade. Além disso, temos nutricionistas e terapeutas ocupacionais que podem compreender melhor as barreiras sensoriais gustativas, pois muitos foram taxados, equivocadamente, como frescos ou enjoados por não aceitarem certos alimentos. Também temos o acompanhamento psicológico, justamente para desenvolver as habilidades sociais.
Receber o diagnóstico pode ser um momento de alívio para a pessoa?
É o que eu ouço de alguns casos: "Isso foi libertador". Até porque, o diagnóstico tira um certo sentimento de culpa, uma vez que você tem uma plataforma biológica que filtrava esse mundo de um jeito diferente.
O efeito também pode ser o oposto, ou seja, a pessoa sentir que poderia ter uma vida diferente, caso tivesse recebido o diagnóstico precoce?
Naturalmente. São pessoas que sentem que poderiam ter sido diferentes com o diagnóstico precoce.
O diagnóstico precoce pode fazer com que a pessoa tenha uma vida mais próxima do normal?
Quanto mais cedo, melhor. Além disso, quanto mais integrado dentro das especialidades necessárias para dar o e ao paciente, também é melhor. A tendência é ter resultados mais positivos quando o diagnóstico é dado mais cedo.
Como o senhor vê o cenário de preparação do mundo para receber uma pessoa com TEA?
Precisamos sensibilizar os empresários e o poder público, de que são pessoas que também vão consumir, se locomover e têm o direito de ocupar todos os espaços. Só que, nem sempre, a gente tem um planejamento social adequado, as chamadas adaptações razoáveis. Seja no controle de odores ou de ruídos, quando a gente fala em ibilidade, foca-se muito em rampas e pisos táteis. Não que isso seja menos importante, mas precisamos pensar em como, sensorialmente, vamos filtrar o nosso espaço. Lá fora, existe o conceito de sensory friendly, ou seja, um local que, sensorialmente falando, é muito amigável. Um exemplo muito simples é a instalação de decibelímetro e o treinamento de funcionários que, ao identificarem um cliente com alguma barreira sensorial, pergunta, por exemplo, em uma cafeteria, se pode vaporizar a bebida ou oferece um abafador de ouvidos.
Como fazer com um profissional que é neurodivergente e precisa dessas adaptações?
A pandemia foi um alento, pois as pessoas neurodivergentes puderam ficar em home-office e o desafio de estar no convívio social, com muito barulho, por exemplo, foi reduzido. Nem por isso, caiu a produtividade. Ele precisa cumprir com suas obrigações, mas, numa plataforma digital, isso será muito mais confortável para um neurodivergente. Além disso, essa pessoa pode usar um abafador, caso não esteja em um momento de conversa.
O que pode ser feito, em termos educacionais, para ajudar crianças com TEA?
A gente precisa de um plano de ensino individualizado e adaptado, em termos de conteúdo. Também é muito comum que os neurodivergentes precisem de ledores e de um espaço mais silencioso na hora de realizar as provas.
Existe a falta de qualificação profissional para lidar com pessoas neurodivergentes?
Há centros sérios formando profissionais capacitados, então, as clínicas precisam buscar melhor os seus profissionais.
Altas habilidades podem ser um indício de autismo?
Os dois podem coexistir, mas um não depende do outro. É comum que as pessoas confundam o diagnóstico de altas habilidades com TEA nível 1. Teremos comportamentos às vezes excêntricos, só que um diagnóstico não está ligado ao outro.
Quais são os desafios do idoso com TEA?
Começa na vida adulta, com a questão da empregabilidade. Há, ainda, uma baixa absorção de pessoas neurodivergentes no mercado de trabalho. Também existe o agravante de pais que precisam parar de trabalhar para cuidar dos filhos diagnosticados com TEA. Além disso tudo, são pessoas que vão ter outras comorbidades e demandas, dentro da velhice, e como isso não foi muito bem acolhido anteriormente, pode se agravar.