Pandemia

Cloroquina: artigo é retratado quatro anos e meio depois da publicação

Na época, um microbiólogo francês afirmou que o medicamento para malária combatia o vírus da covid-19. Nenhum estudo posterior confirmou a alegação, feita com base em uma metodologia considerada antiética e repleta de erros, segundo cientistas. Agora, a revista que divulgou o artigo ite que o trabalho não tem qualidade

Cloroquina: governo brasileiro gastou R$ 90 milhões com o medicamento -  (crédito: Agência Pará/Divulgação)
Cloroquina: governo brasileiro gastou R$ 90 milhões com o medicamento - (crédito: Agência Pará/Divulgação)

Quatro anos e meio depois da polêmica publicação, o estudo que atribuía à hidroxocloroquina potencial contra o Sars-CoV-2, vírus que causa covid-19, recebeu retratação. Isso significa que a revista eLife, que divulgou o artigo, reconhece que ele é falho. “Essa é uma notícia incrivelmente boa”, disse Elisabeth Bik, especialista em análise forense de imagens e consultora de integridade científica na Califórnia, ao site da Nature. “Esse artigo nunca deveria ter sido publicado — ou deveria ter sido retirado imediatamente após sua publicação”, diz Bik.

Na época da publicação, o mundo enfrentava o início da pandemia de covid. Não havia vacinas e o número de mortos aumentava hora a hora. Desde que o artigo foi divulgado, cientistas apontaram falhas de metodologia gravíssimas, que colocavam em dúvida os resultados. Até porque o autor do estudo, o microbiólogo francês Didier Raoult, já havia sofrido 27 retratações de outras publicações.

Apesar dos alertas da ciência, o artigo de Raoult foi aceito sem reservas pelo governo brasileiro. Na época, o então presidente Jair Bolsonaro distribuiu 2,8 milhões de comprimidos do medicamento — originalmente desenvolvido para tratar malária — ao custo de R$ 90 milhões. Nos Estados Unidos, Donald Trump também foi garoto-propaganda da substância. 

Aposentadoria 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estimulou cientistas a pesquisarem o suposto potencial da cloroquina para combater a covid. Todos os estudos subsequentes apontaram que não havia qualquer benefício. Em laboratório, dentro de um disco Petri, de fato o remédio matava o vírus. Porém, nessas condições, até mesmo água sanitária pode eliminar um microrganismo. Nenhuma investigação subsequente confirmou as alegações de Raoult que, não à toa, se aposentou logo depois da publicação. 

Para o infectologista Ole Søgaard, do Hospital Universitário de Aarhus, na Dinamarca, o pior efeito do trabalho de Raoult “foi desviar parcialmente a atenção sobre outros medicamentos em potencial e atrasar o desenvolvimento de medicamentos anti-covid-19 em um momento em que a necessidade de tratamentos eficazes era crítica”. Ao site da Nature, Søgaard destacou que o “estudo foi claramente conduzido às pressas e não seguiu os padrões científicos e éticos comuns”. 

Para a revista que publicou o trabalho, o efeito também foi devastador. A eLife perdeu seu fator de impacto, a métrica que avalia a qualidade e a relevância de um periódico científico. 

 


 

Paloma Oliveto
postado em 18/12/2024 15:55
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