
Por Paulo Meira os* — Nos últimos anos, o conceito de paternidade ou por uma importante transformação no ordenamento jurídico brasileiro. O afeto ou a ser reconhecido como um elemento capaz de gerar vínculos jurídicos, a ponto de, em certos casos, prevalecer sobre o laço biológico. A chamada paternidade socioafetiva ganhou legitimidade por meio do reconhecimento jurisprudencial e da evolução do Direito das Famílias, apoiada nos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da Constituição Federal) e do melhor interesse da criança (art. 227 da CF e art. 4º do ECA).
O Supremo Tribunal Federal consolidou esse entendimento no julgamento do Recurso Extraordinário 898.060/SC, com repercussão geral reconhecida (Tema 622), ao afirmar que é possível o reconhecimento da paternidade socioafetiva independentemente da existência de vínculo biológico ou da adoção formal. Nessa linha, pai é aquele que cria, educa e se apresenta ao mundo como tal. O vínculo se constrói no cotidiano, por meio da convivência contínua, pública e duradoura.
No entanto, a partir dessa evolução, também surgem distorções e exageros. Há decisões que atribuem a alguém a obrigação de prestar alimentos apenas por ter mantido relacionamento afetivo com a mãe da criança e demonstrado carinho pela criança durante aquele período. Em certos casos, até namorados de mães solteiras aram a ser responsabilizados por pensão alimentícia, com base em suposto vínculo socioafetivo.
Esse tipo de situação exige cautela. Não se pode transformar uma relação ocasional em vínculo jurídico permanente. O afeto, por si só, não pode ser entendido como aceitação tácita de paternidade. A jurisprudência já demonstrou maturidade ao reconhecer que o vínculo socioafetivo precisa ser claro, duradouro e baseado na intenção livre e consciente de assumir o papel de pai, o que exige provas concretas da convivência, do tratamento como filho e da assunção de responsabilidades típicas da paternidade.
O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.348.536/SP, reforçou que a socioafetividade deve estar baseada na "relação contínua, duradoura e pública, com animus de paternidade". Portanto, não se trata de uma ficção jurídica, mas de um vínculo real e assumido, o que afasta a imposição da paternidade por presunção ou conveniência.
A banalização do conceito de paternidade socioafetiva pode gerar grave insegurança jurídica. A tentativa de fazer justiça social não pode desrespeitar o devido processo legal, nem tampouco criar obrigações irreversíveis para quem nunca se comprometeu verdadeiramente com o papel de pai. Como bem alerta a doutrina, o direito não pode ser instrumento de compensação afetiva nem de vingança emocional.
É preciso distinguir o homem que, de fato, assume e se porta como pai ao longo dos anos daquele que apenas se envolveu afetivamente com a mãe e manteve contato circunstancial com a criança. O direito deve proteger a criança, sim, mas sem comprometer injustamente terceiros que não assumiram voluntariamente qualquer responsabilidade parental.
A paternidade socioafetiva é um avanço civilizatório. Mas como todo avanço, ela exige responsabilidade, critério e limites. A ampliação do conceito de família não pode servir de escudo para transferência indevida de obrigações, especialmente quando o verdadeiro pai biológico se exime do seu dever. Quem não se comportou como pai não pode ser tratado como tal por mera conveniência processual.
Em um país onde a afetividade virou argumento jurídico, é fundamental lembrar que amor não se presume. E pensão alimentícia, muito menos.
Advogado, pós-graduado em direito civil, mestrando em direito e diretor de relações institucionais da ANACRIM-MG*
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