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Dia Mundial do Rock

No dia do rock, vale refletir sobre a presença negra no gênero

Para marcar o Dia Mundial do Rock, artistas do Sepultura, Planet Hemp, Boogarins e Síndrome Letal contam ao Correio sobre a vivência de músicos negros no gênero

Franco C. Dantas*
Daniel Lustosa*
postado em 13/07/2023 14:33
Moa, vocalista e guitarrista do Síndrome Letal, além de doutorando em História pela UnB -  (crédito: Ananda Martins/Divulgação)
Moa, vocalista e guitarrista do Síndrome Letal, além de doutorando em História pela UnB - (crédito: Ananda Martins/Divulgação)

“Na gênese do rock ‘n roll, está a música negra”, afirma o historiador e punk candango Moacir Alcântara, ou Moa. Nos anos 1950 e 1960, foram os negros em diáspora, imersos num país fortemente segregacionista, os Estados Unidos (EUA), que empunharam as primeiras guitarras distorcidas e estabeleceram para o resto do mundo os fundamentos básicos do rock, concebido em consonância com várias outras vertentes da música negra, como blues e jazz.

Em meio a intensas tensões raciais e a uma rejeição organizada a tudo que era preto, era impossível para os inventores desse novo gênero preverem que sua expressão artística tão agitada e revoltosa alteraria tão violentamente o curso da arte no mundo ocidental. Tristemente, esses visionários também não poderiam prever que, mesmo com essa revolução, seriam sistematicamente excluídos e apagados do circuito comercial criado ao redor desse tal de roque enrow.

Moa, vocalista e guitarrista do Síndrome Letal, além de doutorando em História pela UnB
Moa, vocalista e guitarrista do Síndrome Letal, além de doutorando em História pela UnB (foto: Ananda Martins/Divulgação)


Nas cinco décadas seguintes à sua criação, o rock tomou os holofotes da indústria fonográfica e dominou as paradas como nunca nenhum outro estilo musical havia feito anteriormente, quebrando recorde atrás de recorde e crescendo dia após dia em popularidade. É consenso, entretanto, que, nessa massificação comercial, o gênero se distanciou radicalmente da negritude da qual nasceu, ando a ser protagonizado e associado majoritariamente a pessoas brancas. “É difícil para um indivíduo negro se identificar imediatamente com o rock porque a cara do rock não é uma cara que parece com a dele”, explica Moa.

No Brasil, desde seu auge nos anos 1980, o rock comercial é notavelmente ligado a uma ideia de branquitude intelectualizada, de alto poder aquisitivo, que tinha contato com o que acontecia no exterior. “A gente pode até pegar a realidade aqui de Brasília, onde o rock é sempre associado a essa classe média, galera da Turma da Colina, pessoal filho de diplomata”, pontua o historiador. Enquanto isso, outros estilos musicais como Baile, Black Music, Rap e Funk ganharam espaço e se enraizaram na cultura negra e periférica do país, travando uma rixa simbólica com o rock que perdura no imaginário popular até hoje.

“A gente sabe que a indústria cultural, os meios de comunicação e os próprios imaginários da sociedade demandaram que o rock representasse um apelo somente à juventude branca”, critica Moa. “Se a gente for pensar de uma forma mais abrangente, o rock ainda está muito distante dos anseios, das preocupações e das preferências estéticas e culturais da juventude negra de periferia”.

Resistência


Esse processo violento de apropriação, apagamento e exclusão, contudo, não foi capaz de expurgar a presença e a influência seminal de artistas negros no desenvolvimento do gênero. Tanto em suas formas mais populares comercialmente, quanto no underground, onde o punk e o metal resistem longe das paradas da Billboard e das grandes gravadoras, músicos pretos e pardos conseguem encontrar espaço para instrumentalizar as características do rock a seu favor, para contar sua própria história em seus próprios termos.

BB King, Chuck Berry, Louis Armstrong, Milton Nascimento e Luiz Melodia foram as primeiras referências de artistas negros de Ynaiã Benthroldo, baterista dos goianos Boogarins, banda que alçou voos internacionais com o rock psicodélico. Influenciado pelos pais, Benthroldo acha que “é sempre bom ter referências da história do mundo. Se tu sabes de onde vens, sabes para onde vais”, como afirma o ditado.

Ynaiã Benthroldo, baterista do Boogarins.
Ynaiã Benthroldo, baterista do Boogarins. (foto: Pierre Nocca/Reprodução)

Para Ynaiã, toda banda começa com a energia disruptiva, e o rock provoca movimento, instigação, determinação e vontade de mudança. “(No entanto), se formos ver, na realidade, o que foi vendido pela mídia, gravadoras e criadores de tendências, sempre foi publicidade, um produto”, declara.

Bernardo Negron, o BNegão, é um dos maiores nomes do hip-hop nacional e é compositor e vocalista da Planet Hemp. A banda se popularizou por misturar o som pesado do rock com a lírica do rap, sempre tocando em temas polêmicos como a cannabis e o preconceito racial.

BNegão é um dos vocalistas do Planet Hemp
BNegão é um dos vocalistas do Planet Hemp (foto: BNegão/Divulgação)

Para ele, a cena do rock, “que está branquíssima hoje em dia”, tem um estranhamento com pessoas pretas fazendo o som. “O conceito prévio é de que quem sabia de rock era só a galera branca que estava envolvida. E havia essa surpresa discotecando em festas de rock, ‘nossa, o cara sabe, que engraçado, que sui generis”, relata Negron.

Sob a mesma ótica, Ynaiã acha que “a música e a arte não são bolhas perfeitas e maravilhosas onde os problemas sociais do mundo não existem.” “Eles se acentuam nesse ambiente, é difícil ser negro em qualquer ambiente no mundo.” No entanto, o baterista considera que seria leviano afirmar que a música alternativa não é aberta a músicos pretos e pardos.

BNegão relembra que, nos anos 1960, pouco tempo depois que o rock surgiu, as questões raciais nos Estados Unidos estavam muito acirradas. “A galera só pôde andar no mesmo ônibus no final dos anos 1960. O rock surgiu nos anos 1950, então não tinha como a galera chegar e ter o mesmo tamanho do Elvis se você não tinha o ao mesmo meio de comunicação”, conta.

Além dos problemas que pessoas pretas enfrentam por causa da cor da pele, trabalhar com música no Brasil é uma dificuldade por si só. Desde questões relacionadas a o a estúdios e produtores, até fazer sons criativos e originais, viver da arte é para poucos. Ynaiã afirma que “pessoas negras sempre fizeram arte e sempre tiveram dificuldades em fazer quaisquer coisas, sem e e cheio de preconceitos e estigmas.”

“Em outros países, o incentivo público, as ferramentas para desenvolver projetos e pesquisas, a qualificação, a difusão e outros gargalos da estrutura do mercado da música e arte no geral são tratados com mais zelo e responsabilidade”, afirma. “A música brasileira gerou e gera vários ícones mundo afora e poucos destes são ícones em seu próprio país.”

A falta de apoio às produções nacionais não se traduz necessariamente na falta de qualidade do produto feito aqui. Kurt Cobain, por exemplo, era fã assumido de Os Mutantes e chegou a enviar uma carta para a banda. Ynaiã está ciente disso: “A cultura brasileira é uma das mais ricas e diversas nesse sentido. Sempre que falamos que somos músicos brasileiros somos tratados de maneira respeitosa e com afago”, relata.

Enquanto isso, no underground, Moa, que além de historiador é vocalista e guitarrista da banda Síndrome Letal, se aprofunda e vai atrás das marcas deixadas por artistas negros que contribuíram para o punk rock em seus estágios iniciais de consolidação, a fim de lapidar a concepção de afropunk. “É a partir daí que eu tenho tentado desenvolver a minha pesquisa, traçando uma história da presença negra dentro do gênero.”

Segundo ele, a resistência do punk como uma cultura alternativa, à parte do que acontece no âmbito do mainstream, está diretamente relacionada com o universo da resistência preta. “O rock ainda está próximo do lugar da juventude negra, por causa do seu apelo de rebeldia, embora tenha se tornado massificado com o ar dos anos. Eu, como sujeito negro dentro do punk, acredito que o rock ainda serve para dar vazão e difundir ideias antirracistas”, diz.

Derrick Green, vocalista norte-americano de uma das maiores bandas de metal do planeta, o Sepultura, enxerga nessa vertente da música uma ferramenta potente para a união de diferentes pessoas e culturas. “Tem algo sobre a música que quebra todas as barreiras, fronteiras e pré-concepções que as pessoas criam para si mesmas. Não importa a religião, a raça ou de onde você veio, todas as pessoas conseguem se identificar com a música. É isso que me atrai.”

O vocalista estadunidense ainda diz que encontra no universo do metal um ambiente receptivo para a expressão de sua negritude. “Eu acho que a cena é muito aberta para pessoas de diferentes raças e culturas”.

Moa, entretanto, ainda percebe alguns obstáculos a serem superados no punk, mesmo já sendo um ambiente propício para a desconstrução do racismo. “Em lugares de maioria branca, independentemente de serem mais politizados, a normatividade branca vai sempre falar mais alto”, argumenta. “As coisas ainda são um pouco mais difíceis se você for um sujeito negro. O padrão é que a gente ocupe lugares de coadjuvantes. Se você monta uma banda ou um fanzine, embora as pessoas não expressem isso abertamente, a gente sente que existe um menosprezo pelo que é produzido por pessoas pretas.”

Retomada


Apesar dessas dificuldades, que não são poucas, ao que tudo indica, o rock a por um processo de reconciliação com suas raízes negras. Bandas como Black Pantera e Punho de Mahin, formadas inteiramente por negros, tomam as rédeas do rock e do metal no Brasil e desafiam esse histórico colonialista de apropriação cultural e exclusão racial na música. “Eu acho que, aos poucos, existe uma retomada de uma identificação da juventude negra com o rock”, percebe Moa.

BNegão acredita que o rock é para todos. “Rock é expressão, e isso pode ser de qualquer viés. A pessoa tem uma visão de mundo e está expressando aquela vontade, que está vivo e solta essa energia forte na música”, afirma Negron. “É como se a galera de direita não pudesse curtir o rock.

Moacir, no entanto, entende como um problema sério a despolitização do rock. “Esse distanciamento entre a cultura do rock e a periferia fez com que o rock se tornasse inofensivo”, certifica. “O rock se despolitizou, não do ponto de vista essencial, mas do ponto de vista circunstancial, como é o caso de algumas pessoas que estão à frente de certas bandas com um discurso conservador e reacionário. Alguns integrantes de bandas que se alinharam com o governo ado são provas disso, tipo o Roger, do Ultraje A Rigor, ou o Digão, dos Raimundos”.

Trilhando um caminho mais nichado, o rock hoje recupera as características perdidas durante o processo de massificação, como a postura de contestação social e a liberdade criativa. “Tudo se transforma com o tempo, se ressignifica e caminha para outro lado e linguagem. Existem outras linguagens muito mais inovadoras e questionadoras hoje em dia no rock, a meu ver”, afirma Ynaiã.

Mesmo que dê margem para a expansão do discurso de ódio, a web também tornou-se uma ferramenta importante para esse trabalho de refletir e recuperar elementos do rock, como entende Moacir. “Eu acho que a internet, embora tenha um aspecto de esvaziar certos movimentos e tornar tudo muito estético, também facilita muito a organização desse movimento”.

Derrick Green, estadunidense, é vocalista da banda mineira Sepultura
Derrick Green, estadunidense, é vocalista da banda mineira Sepultura (foto: Marcos Hermes/Divulgação)

Derrick Green, contestado quando foi anunciado no Sepultura, hoje conquista o respeito e a iração de toda a cena do metal, e torna-se exemplo para os que vêm depois dele. “Eu acho maravilhoso que jovens negros têm em mim alguém para se inspirar”, se alegra.

*Estagiários sob supervisão de Nahima Maciel

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  • Ynaiã Benthroldo, baterista do Boogarins.
    Ynaiã Benthroldo, baterista do Boogarins. Foto: Pierre Nocca/Reprodução
  • BNegão é um dos vocalistas do Planet Hemp
    BNegão é um dos vocalistas do Planet Hemp Foto: BNegão/Divulgação
  • Derrick Green, estadunidense, é vocalista da banda mineira Sepultura
    Derrick Green, estadunidense, é vocalista da banda mineira Sepultura Foto: Marcos Hermes/Divulgação
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