
O filme Deserto particular mal tinha sido lançado quando o ator Antonio Saboia, protagonista do longa — ganhador do prêmio do público de Melhor Filme do Festival de Veneza e indicado pelo Brasil para representar o Oscar em 2022 —, soube pelo diretor, Ally Muritiba, que o cineasta Walter Salles tinha assistido a obra, e gostado muito. À época, Salles estava na pré-produção de seu novo trabalho e, empolgado com a notícia, Saboia mandou um e-mail, agradecendo os elogios e afirmando que gostaria de, um dia, trabalharem juntos.
"Atirei uma mensagem na garrafa ao mar, dizendo que queria trabalhar com ele. Walter me respondeu, marcamos um encontro na livraria Argumento, no Leblon, que seria cenário do filme, ele pediu um suco, e eu fui na onda dele. Ele estava com o roteiro do seu novo projeto e me entregou, me convidando para o papel", conta, em entrevista exclusiva ao Correio, o intérprete de Marcelo Rubens Paiva, o autor da biografia, lançada em 2015, que gerou o ganhador do Oscar 2025 de Melhor Filme Internacional, Ainda estou aqui.
De acordo com Saboia, que traz no currículo títulos marcantes como Bacurau (2019), Deserto particular é um filme silencioso, com a presença muito forte de olhares, e isso chamou a atenção de Walter Salles, que cravou o papel dele sem necessidade de teste. "Ele foi no instinto", resume o ator de 39 anos, que nasceu na França e foi criado entre São Luís (MA) e Brasília.
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Antonio sabia quem era Marcelo Rubens Paiva, conhecia o livro e o filme Feliz ano velho, de sua autoria, mas não tinha conhecimento sobre Ainda estou aqui. "Li, ao mesmo tempo, o livro e o roteiro, não sei dizer qual primeiro. O que mais me chamou atenção é que, às vezes, quando o tema central de uma narrativa é panfletário se prega para convertidos. Ainda estou aqui foge disso com delicadeza e força. É sobre família, e também um pouco sobre terror, então o elemento humano é o mais forte", defende. "O grande trunfo é ser um filme político, sem ser panfletário. É sobre uma família atropelada pela repressão."
Para o ator, o êxito de Ainda estou aqui é contar a história dentro de um contexto atual. "Ainda mais hoje, quando o Donald Trump volta à Casa Branca, assim como o estado das coisas do mundo, de um modo geral, para além da história do Brasil, nos assusta muito. A ditadura é algo que pode se repetir, o medo ainda está aqui. É fundamental pegar essa história e dar uma resposta a essa parcela da população que pede a volta da ditadura", argumenta.
Composição do personagem complexo
No longa, Antonio Saboia dá vida a Marcelo Rubens Paiva, o único filho homem de Eunice e Rubens Paiva. Escritor e dramaturgo, ganhou destaque no cenário nacional com o livro Feliz ano velho (1982), uma autobiografia que narra sua experiência de se tornar tetraplégico, aos 20 anos, após um acidente. Mas, em Ainda estou aqui, sua condição não é o destaque.
"O mais difícil foi reconstruir um corpo e não fazer isso pesar. O filme não é sobre o acidente que deixou Marcelo tetraplégico, não é sobre essa redescoberta dele. Tudo foi balanceado para não atrair atenção sobre isso. Na filmagem, tive que trabalhar para não atrair o olhar para isso. Foi um trabalho milimétrico, porque esse não era o propósito", explica o ator, que ou duas tardes com um amigo tetraplégico para compor a movimentação na cadeira.
Após tratamento de fisioterapia e terapia ocupacional, Marcelo Rubens Paiva, hoje com 65 anos, voltou a locomover as mãos e os braços. Na fase retratada no longa, ele fumava, e Antonio conta que viu foto de como ele segurava o cigarro, mas não fez igual. "Aquele era o jeito de segurar (o cigarro) do Bruno, meu amigo tetraplégico. Nós fumamos alguns cigarros juntos para eu treinar essa movimentação da mão, mas foi apenas uma nuance da composição. Nesses casos de reprodução, há o mergulho na vida da pessoa, cheio de desafios, que são ultraados pela repetição. Consumi tudo sobre ele, o jeito de pegar o copo nas entrevistas, por exemplo", relata.
Segundo o ator, foi um mês intenso, com a cadeira em casa, observando-a por três dias antes se sentar nela. "Fui pedindo autorização, até que rodei com a cadeira na orla do rio, indo e voltando por duas horas e meia. É curioso porque fui percebendo os olhares e os comentários, nesse olhar periférico, e a percepção das pessoas me observando, sentindo piedade, me gerou uma crise de ansiedade. Eu quis voltar para casa, mas o Marcelo não teve essa escolha. Então, fiquei até ar essa crise, esse sentimento", recorda Saboia, que se encontrou com o filho de Eunice e Rubens três vezes ao longo do processo todo. "Ele me acolheu bem, só disse: Não me imita. Mas afirmou que era importante sentir o lance das mãos e dos movimentos. Depois, nos encontramos no set e na casa dele. Foi o suficiente, porque eu não quis me limitar. Prefiro uma composição sem apego, que aumenta o medo de errar, e trava a criação", reflete.
Contato com as Fernandas
Na gravação com Fernanda Torres, quando o ator mirim Guilherme Silveira a o bastão, Antonio Saboia se lembra de ficar muito impressionado com a entrega da atriz, indicada ao Oscar pela sua atuação bastante elogiada ao redor do mundo como a mãe de família que se depara com a prisão e consequente desaparecimento do marido (vivido por Selton Mello). "Ela é essa pessoa espirituosa, engraçada, acolhedora, disponível. Assim como eu estava entrando na filmagem, ela estava em um processo de conhecer os filhos mais velhos nessa nova fase, redescobrir a Eunice", relata.
O ator — que recentemente fez uma participação especial nos primeiros capítulos de Mania de você como o marido de Isis (Mariana Ximenes) — comemora a oportunidade de contracenar com Fernanda Montenegro, como Eunice no fim da vida. Ele comenta sobre uma sequência gravada, que não entrou na edição do longa premiado. "Poder chamá-la de mãe, ouvi-la me chamar de 'meu filho' mesmo nos bastidores e o diálogo que tivemos em cena vão ficar para sempre. Eu tive que fingir costume, porque vivi uma pressão interna absurda: do meu lado esquerdo, a Dona Fernanda, do direito, o Walter dando instruções, e aí o Marcelo veio assistir ver a gravação. Aquilo foi insano e inesquecível!"
Antonio Saboia observa que a palavra Oscar não era tão presente ao longo do processo de produção e filmagem de Ainda estou aqui, mas a atuação de Fernanda Torres era algo perceptível de premiação. "Porém, infelizmente, nem todos que merecem chegam lá. Ela chegou, e isso muito nos orgulha", avalia. "Eu acho que o Oscar abriu um precedente, inédito, novo. Ninguém sabe os próximos os, como lidar, o que isso representa para nossa cultura. É o cinema brasileiro ultraando fronteiras. A gente frequenta muito festivais, como Berlim, Cannes, Veneza, desde Cidade de Deus, que virou fenômeno pop, mas agora se abre um novo portal. E é muito bonito ver esse movimento", finaliza o artista, que pode ser visto nas séries Os últimos dias de Gilda e Rotas do ódio, disponíveis no Globoplay.