
Resultados da edição de 2024 do Indicador de Alfabetismo Funcional no Brasil (Inaf), divulgados nesta segunda-feira (5/5), mostram que 29% da população do país segue na condição de analfabetismo funcional, mesmo patamar registrado em 2018. A pesquisa, cuja série publicada desde 2001 havia sido interrompida em 2019 devido à pandemia, mapeia habilidades de leitura, escrita e matemática de homens e mulheres de 15 a 64 anos em situações cotidianas, além de trazer recorte digital inédito.
Coordenado pela organização Ação Educativa e pela consultoria Conhecimento Social, o Inaf de 2024 é uma correalização da Fundação Itaú, da Fundação Roberto Marinho, do Instituto Unibanco, da Unicef e da Unesco. Para se chegar às conclusões, foi analisado o desempenho de 2.554 pessoas de todas as regiões brasileiras em um teste que aborda situações comuns do cotidiano, realizado entre os meses de dezembro de 2024 e fevereiro de 2025.
Os níveis de analfabetismo funcional são divididos em “analfabeto” (7%) e “rudimentar” (22%); enquanto o alfabetismo é dividido em “elementar” (36%), “intermediário” (25%) e “proficiente” (10%). A margem de erro varia entre dois e três pontos percentuais, e o intervalo de confiança é de 95%.
Para a divisão dos respondentes, foram consideradas habilidades relacionadas a texto, chamadas de “letramento”, e a números, denominadas “numeramento”. Além disso, nesta edição, os entrevistados foram convidados a resolver questões em um aparelho de telefone celular. Assim, foi possível identificar, também, de que forma as pessoas lidam com informações no mundo digital.
De acordo com o estudo, “são considerados analfabetos funcionais aqueles que conseguem realizar tarefas bastante simples que envolvem a leitura de palavras, pequenas frases e números familiares como o do telefone, da casa, de preços etc.” Quando precisam realizar tarefas com base na leitura ou escrita de textos mais logos ou complexos e números maiores ou operações, porém, não conseguem.
A porcentagem de brasileiros analfabetos funcionais desde o último Inaf, realizado em 2018, continua a mesma. “A gente não está conseguindo de fato sair do lugar, resumidamente, apesar do intervalo de seis anos, a gente não observou mudanças”, explica ao Correio a coordenadora da pesquisa e sócia-diretora da Conhecimento Social, Ana Lima. “É claro que nesse intervalo de seis anos teve um fato muito fora da curva, que foi a pandemia.”
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Pandemia se reflete em tempo atípico
A pandemia, que adiou, inclusive, o lançamento de novas edições do Inaf, é também, segundo Ana, uma das razões de a pesquisa deste ano ser tão importante, devido ao intervalo maior entre o último estudo.
“Não é só um tempo maior, mas um tempo em que muitas mudanças aconteceram”, enfatiza. A entrada da tecnologia na vida das pessoas se acelerou, durante o tempo de isolação física, e fez com que a forma de entender o analfabetismo funcional fosse atualizada.
A pandemia também é um fator a que se implica não apenas a estagnação da taxa geral de analfabetos funcionais, mas o crescimento dela em alguns grupos específicos. Pessoas ficaram isoladas de ambientes dedicados ao letramento, como espaços de estudo e trabalho, o que provocou “uma interrupção do processo de desenvolvimento”.
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Se analisados apenas os jovens, por exemplo, o percentual cresceu 2%: enquanto, em 2018, 14% da população da faixa etária de 15 a 29 anos estava na condição de analfabetismo funcional, em 2024 são 16%. “É neles que mais se reflete”, reforça Ana. “Nessa juventude que estava em um processo formal de desenvolvimento.”
Carla Chiamareli, gerente do Observatório Fundação Itaú, acredita que os números são “indicativo de que o poder público, nas esferas federal, estadual e municipal, deve unir esforços” para fortalecer a educação, direito constitucional de todos e dever do Estado e da família.
“É importante a gente ter esse indicador para a gente conseguir pensar e trazer evidências para o que o poder público pode fazer para reverter essa realidade”, afirma. Uma vez que é a população jovem “que vai nos representar economicamente amanhã”, dada a inversão da pirâmide etária em 2025, os resultados, segundo a especialista, trazem “sentido de urgência da ação do estado e da sociedade para que a gente consiga manter uma situação saudável”.
Ana concorda “que todo mundo tem que correr atrás para compensar essa situação”. Por “todo mundo”, entende-se, além do governo, escolas, que estão correndo atrás de “recomposição de estudos”, universidades, que desenvolveram semestres de adaptação, e empresas, que reforçam processos de treinamento de forma a acolher o público que chega com uma defasagem maior.
“O que a gente espera é que os dados do Inaf, trazendo um pouco mais de evidência sobre isso, acelerem e aumentem esse trabalho”, informa. “Não tem uma solução que, fazendo isso, resolve tudo. É um conjunto e nesse conjunto tem um elemento importante que é a conscientização dos vários campos, dos vários setores.”
População mais velha é mais vulnerável ao analfabetismo funcional
Apesar do crescimento da taxa de analfabetismo funcional entre a população mais jovem, a faixa de 15 a 29 anos tem o maior percentual de pessoas funcionalmente alfabetizadas (84%), se comparados a outros grupos etários — o que reflete, inclusive, o efeito positivo de políticas educacionais adas. São os mais velhos, entre 50 e 64 anos, que sofrem mais com o analfabetismo funcional. Neste grupo, a quantidade de analfabetos funcionais chega a 51%.
“Isso nos mostra a necessidade de ampliar a oferta de educação de jovens adultos”, afirma Carla. “Eles não estudaram na idade certa, mas é direito deles também ter essa oferta garantida.”
Escolaridade e o papel na alfabetização
Além do recorte entre a população mais jovem, o recorte de escolaridade mostra que 98% dos brasileiros que não estudaram, ou seja, não chegaram ao ensino fundamental, são analfabetos funcionais.
Exatos 17% dos brasileiros que chegaram ao ensino médio, porém, mesmo se concluíram a educação básica, também estão dentro do quadro de analfabetismo funcional. Apenas 24% deles são de fato proficientes, o nível mais alto da escala de entendimento, o que significa que o fato de terem frequentado a escola não assegura que tenham habilidades suficientes para fazer uso da leitura e da escrita em diferentes contextos da vida cotidiana.
Até mesmo entre aqueles que chegaram ao ensino superior, 12% podem ser considerados analfabetos funcionais. A proporção desse grupo que alcança os níveis intermediário e proficiente também diminuiu: de 71%, em 2018, foi para 61%, em 2024.
Chiamareli acredita que esses números representam a qualidade da educação: “Qual é a escola que eu tenho que oferecer para que eu possa garantir a qualidade da aprendizagem?”. É preciso, ela elenca, entre outros fatores, pensar currículos que abordem e mobilizem problemas reais, garantir infraestrutura, recursos e professores bem qualificados.
Outros recortes para entender o analfabetismo
No que diz respeito ao gênero, as mulheres continuam, em média, desde os anos anteriores, em “patamares ligeiramente superiores aos homens”. 73% delas podem ser consideradas funcionalmente alfabetizadas, em comparação a 69% dos homens.
Com foco nas regiões brasileiras, o Nordeste tem a maior proporção de analfabetos funcionais, com 37% da população neste grupo; enquanto o Norte e o Centro-Oeste concentram, juntos 12%.
Também foram analisados renda familiar — 48% das pessoas em famílias que recebem até um salário-mínimo são analfabetas funcionais, enquanto em famílias que recebem mais de cinco esse número diminui para 4% —, situação de trabalho, porte e localização de municípios — entre habitantes do interior 58% pertencem ao quadro de analfabetismo funcional, comparados a 20% na capital e 11% na periferia.
Chiamareli enfatiza a necessidade de políticas inclusivas para minorias. “Não tem como ser solucionado de um dia para o outro, é um processo, porque é histórico. O que fica evidente é que é preciso ampliar essas políticas inclusivas para reverter essas realidades.”
Ana acrescenta que, ao caracterizar a população em diferentes grupos, fica mais fácil pensar em políticas que atendam a todos eles da forma que precisam. “Uma solução que funciona para uma senhora de 60 que more no interior não é a mesma para um jovem que mora na cidade com o mesmo grau de analfabetismo”, esclarece. “A gente fica pensando em estratégias e políticas que podem ser adequadas para esses diferentes perfis.”
Recorte digital do analfabetismo
O recorte inédito sobre alfabetismo no contexto digital tem por objetivo compreender a forma com que a população brasileira lida com as transformações digitais presentes no dia a dia — fazer uma compra on-line, preencher um formulário, criar senhas ou até mesmo trocar mensagens em aplicativos.
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Para Chiamareli, esse novo aspecto do teste é fundamental. “Hoje a gente não consegue falar da nossa vida sem o uso da tecnologia”, justifica. “Conseguir olhar para a tecnologia é fundamental, já que ela é parte inerente do nosso cotidiano. Se a gente pensar em políticas de educação de jovens adultos, por exemplo, elas têm de vir acompanhadas também do letramento digital.”
O recorte mostra que 95% dos analfabetos só conseguem realizar um número limitado de tarefas no contexto digital, e que 40% dos alfabetizados proficientes apresentaram médio ou baixo desempenho nas mesmas atividades. No que diz respeito aos brasileiros em situação de alfabetismo elementar, o ambiente virtual é auxiliador (17%) na mesma medida em que é desafiador (18%).
No que diz respeito à idade, os mais jovens, entre 15 e 29 anos, têm nível mais alto de desempenho digital, enquanto os mais velhos, entre 50 e 64, apresentam a pior performance.
Ana reforça que, quando se tinha consolidado um entendimento sobre letramento digital, apareceu a Inteligência Artificial. “A gente quis contribuir para esse debate, indo a campo para levantar um ponto específico dessa questão”, informa. “As habilidades de letramento podem facilitar a inserção no mundo digital e ampliar as oportunidades” ou podem “excluir ainda mais desses espaços e ambientes”.
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Futuro da alfabetização no país
Se analisados os dados anteriores da pesquisa, realizada desde 2001, é possível perceber que, até 2009, havia uma redução contínua na proporção de analfabetos funcionais. A partir de então, quando a percentagem atingiu pela primeira vez 27%, o número parou de diminuir e, a partir de 2018, quando estagnou, aumentou dois pontos percentuais.
“Que cada um, do seu lugar, consiga refletir e pensar como pode mudar essa realidade”: é a esperança de Clara Chiamareli. Para ela, o Inaf “de fato traz um chamamento social para que todos os brasileiros se corresponsabilizem para mudança”.
“Caso contrário”, ela teme, “a gente vai perder a nossa juventude e a potência que ela tem”. Ela finaliza reforçando a importância de “potencializar a juventude e ao mesmo tempo cuidar daqueles que não tiveram essa oportunidade no tempo certo”.
Ana Lima, por sua vez, espera que a sociedade perceba o quanto o analfabetismo funcional tem efeitos nocivos para as pessoas, bem como para a saúde, a educação e outras áreas do país. “As pessoas têm a sensação de que isso acontece”, explica. “O Inaf tenta contribuir ao estimar o tamanho desse fenômeno, onde ele ocorre, entre quais grupos. Traduzir essa percepção de uma fragilização ou não avanço das competências para coisas um pouco mais quantificadas.”
Assim, ao fazer o fenômeno conhecido e caracterizá-lo, acredita ela, é possível “pensar melhor em estratégias para combater as fragilidades necessárias” e, a partir do panorama, auxiliar governo, comunidade e sociedade a colocar foco nas áreas que mais precisam. “Os dados vão ser disponibilizados para que a gente pense junto em como agir e até mesmo traduzir melhor esse tipo de comando.”