
Duas descobertas transformaram a vida da professora Maria Madalena Torres. A primeira foi a paixão pela escola. Nos períodos mais difíceis pelos quais ou, diante da pobreza e da defasagem de aprendizagem, foi em docentes vocacionados que encontrou sua fortaleza e o estímulo para continuar. O encontro com o método Paulo Freire representou o segundo momento decisivo, e o motivo da dedicação de toda a carreira, que ela ainda carrega, aos 62 anos completados hoje.
Nascida em Divinópolis de Goiás, cidade a 440km de Brasília, Madalena chegou a Brasília com 9 anos de idade. Seu Emiliano de Torres Quintanilha e dona Maria Pereira Torres vieram do município goiano com os cinco filhos para morar na recém-inaugurada Ceilândia, em 1971. “Quando eu cheguei a Ceilândia, tinha 8 meses, era um bebê. Eu sempre brinco com isso: que o talco da Ceilândia bebê era a poeira. A gente deitava e ficava a marca do nosso rosto sobre o travesseiro. Acredita nisso?”, lembra-se, bem-humorada.
Enquanto os pais trabalhavam, como servente de pedreiro e jardineira na Novacap, Madalena cuidava dos irmãos e garantia que houvesse água para a família. Entrava nas longas filas do carro-pipa, que depois virou chafariz e, finalmente, a caixa d’água, hoje símbolo da cidade. “Levávamos as latas para encher e tinha um carrinho de madeira onde elas eram colocadas. Era preciso recorrer a um adulto (para levantar as latas), pois meu pai e minha mãe já trabalhavam. E aí os adultos iam só colocando nossas latas para trás na fila”, relembra.
“Quem chegou aqui criança ou quem nasceu em Ceilândia naquela época já foi forjado na luta”, observa a pioneira. O pai, que morreu em 2011, trabalhou na construção da escola onde Madalena concluiu o ensino médio, o Centro de Ensino Médio 4, também conhecido como Centrão da Guariroba. Madalena é a mais velha de oito irmãos — os outros três nasceram já em Brasília. A família morava num barraco de madeira, dividido com uma das tias, na Ceilândia Sul. Só por volta de 1977 foi que conseguiram se mudar para um lote na Guariroba, com a casa em alvenaria, de um quarto, sala, cozinha e banheiro, de paredes pintadas com cal direto sobre os tijolos.
“Foi uma alegria!”, conta. “Eu me lembro quando nós entramos nessa casa. Meu pai se ajoelhou, minha mãe e eu também, porque era muito bom ter a sensação de que moraríamos por longos anos naquele lugar.” “Minha adolescência foi quase uma adolescência adulta, porque eu tive que cuidar de todos os meus irmãos, mas, mesmo assim, era uma felicidade estar naquela rua, junto daquelas pessoas”, afirma. “As memórias afetivas estão todas ali, coisa que você não se esquece. Só naquela rua, eu tinha nove afilhados.”
Código indecifrável
Apesar de ter se tornado professora, a trajetória escolar de Madalena não foi fácil. Ela demorou a perceber que estava sendo excluída do processo de letramento e de alfabetização, ainda em Divinópolis. Foi depois da visita da secretária de Educação do município que ela, criança, notou o tamanho da defasagem. A mulher, vestida com saia de renda, ou pelas carteiras e comentou ao ar pela da menina: “Nossa, ela só faz bolinhas”.
Perturbada com o comentário, a pequena saiu andando pelas carteiras e observou as letras e palavras escritas no caderno dos colegas, um código até então desconhecido e, por isso, indecifrável para ela. “Nessas cidades pequenas, não é muito fácil ser estudante pobre, não. As meninas de classe média são muito melhor tratadas pelos professores do que a gente”, reflete, hoje, Madalena.
A chegada em Ceilândia foi importante nesse aspecto também. Desde o início da educação básica, ela encontrou professores que conseguiram guiá-la pelo processo de aprendizagem e, dos de português, lembra-se dos nomes até hoje. “Quando eu saí de Divinópolis, já sabia ler um pouco, avancei daquelas bolinhas. Também escrevia um pouco. Mas foi quando cheguei aqui que avancei”, relata.
Essa virada de chave influenciaria a escolha profissional mais tarde. “Eu tive um exemplo de que a educação era boa e percebi que queria ficar o resto da vida com a escola, não só estudar e sair correndo para outra profissão, mas estudar e permanecer na escola. Eu me apaixonei. Foi um processo muito bonito.”
Meu pé de abacate
Quando cursou a antiga 8ª série — hoje 9º ano —, Madalena novamente enfrentou dificuldades para aprender português e matemática. Dois bimestres haviam se ado e as chances de recuperar as notas baixas eram remotas. “Eu chorei tanto que o canto da carteira ficou cheio de lágrimas”, relata. A professora de português, Márcia, chegou perto e acolheu a estudante desolada, perguntando: “Você quer aprender?” Ao receber a resposta positiva, Márcia entregou a Madalena seis livros, de Lima Barreto e de Machado de Assis.
“Lá em casa não tinha nem dicionário. Ela me deu esses seis livros e, dentro de cada um, colocou a orientação do que ela queria. E eu me dediquei. Lá em casa tinha um pé de abacate. No tempo quente, ele era bem fresco, frondoso. Eu me sentava lá, num banquinho, e lia, lia, lia…. Me apaixonei pela leitura ali”, conta a educadora. Ao fim do bimestre, Márcia começou a entregar as notas da turma, uma a uma, andando pelas fileiras com os trabalhos debaixo do braço.
Madalena foi a última a receber. “Ela falou para todos da sala, e para mim também, que eu nunca mais seria a mesma. Porque quem sabia português sabia também interpretar matemática, ia se sair melhor em história, em geografia. E foi verdade.”
Depois de terminar o ensino médio, Madalena ainda entrou e saiu do convento e trabalhou como empregada doméstica antes de chegar à sala de aula como professora. O primeiro trabalho foi na creche da Ação Social Nossa Senhora de Fátima. Nessa mesma época, ocorreu a descoberta essencial para sua carreira: o método Paulo Freire.
A líder do grupo jovem da paróquia em que atuava, Vânia Rego, ofereceu a casa para desenvolver as atividades do Núcleo Paulo Freire de Alfabetização de Adultos. As palavras geradoras, foco da abordagem freiriana para alfabetização, eram guardadas embaixo dos colchões. Nomes como os dos professores Maria Luiza Angelim, Erasto Fortes Mendonça, Laura Coutinho e Renato Hilário, à época mestrandos da Universidade de Brasília (UnB), foram essenciais para a formação de Madalena e de outros jovens educadores populares de Ceilândia.
Uma mestre certificada
A tão sonhada chegada à universidade só ocorreu em 1996, cerca de 10 anos depois, quando ou para o curso de filosofia na Universidade Católica de Brasília (UCB), depois de ter concluído o magistério em um curso de complementação pedagógica. “Era difícil arrumar emprego. Era difícil ar na UnB. Era difícil ar na Católica, difícil de pagar. Então, a vontade não faltava, mas não tinha jeito.”
A situação só começou a melhorar quando, no meio do curso superior, Madalena foi aprovada no concurso da Secretaria de Educação do DF. Logo depois, engatou uma pós-graduação na UnB e foi aprovada para o mestrado na área de tecnologias em educação, que resultou na publicação do livro Cinema como linguagem na educação e na alfabetização de jovens e adultos.
“E aí eu descobri o mundo, por meio do estudo. Eu não me considero uma pessoa que escreve muito bem ainda, acho que a língua portuguesa é muito complexa. Mas gosto muito de ler”, afirma. O prazer virou desafio nos últimos anos, quando a visão começou a ficar comprometida devido a complicações da diabetes, mas a professora segue confiante e ativa nos grupos de mensagem, sempre acionada pela comunidade quando o assunto é defender a educação popular e lutar pela melhoria da qualidade de vida da população de Ceilândia. Conta também com a companhia quase diária da mãe, hoje com 76 anos.
Madalena se aposentou da secretaria em 2010. Hoje, representa o Grupo de Trabalho Pró-Alfabetização Fórum EJA no Conselho Comunitário de Ceilândia. “Foi guardando cartaz debaixo do colchão da minha amiga Vânia e visitando os alfabetizandos que eu descobri que a educação popular vai onde outras não vão, nem a privada, nem a pública. Quem vai atrás somos nós”, orgulha-se.
Ela perdeu a conta de quantos alunos formou, seja na alfabetização, seja nas séries iniciais do ensino fundamental, mas foram mais de 20 as turmas de alfabetização. Com o tempo, ou a se dedicar mais às tarefas de coordenação, que ainda acumulou com a atividade no Centro de Educação Paulo Freire de Ceilândia (Cepafre), do qual é fundadora.
“A diferença da metodologia de Paulo Freire é que ela discute a realidade: é ler o mundo para escrever o mundo e transformar o mundo. Nem que o mundo seja só a sua rua”, observa.
Sonhos para Ceilândia
Madalena alimenta diversos sonhos para Ceilândia, alguns deles incluídos na militância do Movimento Popular por uma Ceilândia Melhor (Mopocem). Um dos principais é que a cidade ganhe um segundo hospital, com pronto-socorro. Além do Hospital Regional de Ceilândia, o Hospital Cidade do Sol foi inaugurado em 2021, mas fica na região do Sol Nascente.
Ver o câmpus de Ceilândia da UnB funcionando à noite seria outra realização para a professora, além de ter uma cidade mais arborizada. “Precisa haver uma consciência ecológica na cidade de Ceilândia, que deve ser trabalhada com o coletivo. A escola pública precisa trabalhar isso com seus estudantes, por exemplo”, atesta.
“Onde estão os parques ecológicos de Ceilândia, se nem o Rio Melchior foi revitalizado?”, questiona. A luta pelo o e a permanência dos estudantes na educação de jovens e adultos (EJA) também segue incessante. “Saber ler, escrever, contar, discutir e entender o mundo torna a vida muito melhor, muito mais feliz”, descreve a professora. “Vai adiantar pouco o Brasil se desenvolver com as pessoas sem estudar. Sempre vai ficar uma massa sem estudo, sem nada, embora já tenha melhorado muito.”
“Outra coisa que eu sonho muito, e espero que eu não morra sem isso, é de ver o Cepafre com sede própria”, afirma Madalena. O centro, que completa 37 anos em 2025, funciona em um prédio da UnB em Ceilândia. Em 2019, ela recebeu o título de Cidadã Honorária de Brasília da Câmara Legislativa do DF, em reconhecimento à trajetória na educação popular e ao trabalho na alfabetização de jovens e adultos. Anos antes, havia recebido moção honrosa na mesma Casa.
“Nosso papel nós estamos fazendo: gerando demanda. Não podemos deixar de sonhar os sonhos possíveis. Tem muita coisa que parece impossível, mas, se houver vontade política, gestão de compromisso, com toda a certeza, pode haver mudança. E aí os nossos sonhos, que pareciam impossíveis, tornam-se possíveis. São essas coisas freirianas que aprendemos o tempo todo.
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