Conclave

Entre a continuidade do trabalho de Francisco e a ortodoxia

Os 133 cardeais com poder de voto no conclave, a partir de quarta-feira, terão que decidir se seguem o caminho aberto pelo papa Francisco ou se apostam em uma abordagem mais ortodoxa para o comando da Igreja Católica

Peregrinos caminham com cruz de madeira pela Praça de São Pedro: penitência, fé e esperança em um novo papa  -  (crédito: Dimitar Dilkoff/AFP)
Peregrinos caminham com cruz de madeira pela Praça de São Pedro: penitência, fé e esperança em um novo papa - (crédito: Dimitar Dilkoff/AFP)

Roma — Com fim do Novemdiales (ou "Nove Dias Santos"), o período de luto da Igreja Católica em memória do papa Francisco, as Congregações Gerais dos Cardeais aceleram o o na tentativa de afunilar os nomes dos papabili ("papáveis"), às vésperas do conclave, que começa às 16h30 de quarta-feira (11h30 em Brasília). A escolha do próximo papa deve levar em conta a crise da fé que marca o catolicismo. Os 133 cardeais eleitores terão pela frente um dilema existencial para Igreja: seguir o caminho aberto por Francisco, com uma série de reformas, ou impor uma condução mais ortodoxa do trono de São Pedro. A decisão dos purpurados de se reunirem em dois turnos, na Sala Paulo VI, às 9h (4h em Brasília) e às 17h (meio-dia no Brasil) sugere dificuldade de consenso e pode coloca em xeque as previsões otimistas sobre um conclave rápido. Dos 133, quatro não haviam chegado a Roma até ontem. 

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Pela primeira vez, o conclave ganha características de multipolaridade. Francisco abriu o escopo do Colégio Cardinalício e nomeou mais de 120 cardeais de 72 nações. Durante seus 12 anos de pontificado, a sinodalidade se fez presente na busca por não priorizar o eurocentrismo na escolha dos "príncipes da Igreja". Na opinião de cardeais não eleitores e de jornalistas, tamanha diversidade de purpurados traz um caráter inédito à escolha do papa.

Apesar de Francisco ter nomeado 80% dos cardeais, nada impede que os indicados pelo jesuíta argentino votem por nomes que fujam da cartilha reformista. O jornal italiano La Stampa divulgou, ontem, que o cardeal italiano Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, segue como favorito ao trono de São Pedro e teria garantidos entre 40 e 45 votos dos 89 necessários. Em segundo lugar, apareceria o também italiano Matteo Zuppi, que teria prometidos de 25 a 30 votos, seguido pelo filipino Luis Antonio Tagle, que teria o apoio de cerca de 30 cardeais.  

Por volta das 18h45 de ontem (13h45 em Brasília), foi celebrada a última missa Novemdiales na Basílica de São Pedro, na Cidade do Vaticano. Na homilia, o cardeal franco-marroquino Dominique Mamberti citou o papa Francisco, falecido em 21 de abril. "Todos nós iramos como o papa Francisco, animado pelo amor do Senhor e trazido por Sua graça, foi fiel à sua missão até o fim de suas forças", declarou. 

Continuidade

Ao fim da missa na Basílica de São Pedro, o Correio conversou com dois cardeais. O indiano Oswald Gracias, arcebispo de Mumbai. Por ter completado 80 anos, ele não pode votar no conclave de quarta-feira. Mesmo assim, demonstrou otimismo. "O Espírito Santo escolheu o papa Francisco, e o Espírito Santo nos dará um homem adequado, nos guiará", comentou. Ele disse apostar na continuidade do trabalho do jesuíta argentino. O paraguaio Adalberto Martínez Flores, 73, figura entre os 133 eleitores e disse ver o conclave com muita "esperança"  (leia o Duas perguntas para). 

Dom Odilo Scherer, cardeal e arcebispo de São Paulo, afirmou a um grupo de jornalistas que "o próximo papa não será uma xerox de Francisco". "O menino que seria canonizado, Carlo Acutis, dizia que Deus não gosta de fotocópias, gosta de originais. Tem continuidade e descontinuidade: descontinuidade porque não é mais o mesmo papa que está adiante. Agora a continuidade é cuidar da Igreja, da missão da Igreja, as preocupações em relação à evangelização." A declaração foi dada depois de missa na Igreja de Sant'Andrea al Quirinale, em Roma.

Especialista em história da Igreja Católica e professor da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Roberto Regoli ite ao Correio que o legado de Francisco é um ponto importante, mas alerta que a questão é mais ampla. "Ela diz respeito a quais urgências para a Igreja são consideradas mais significativas. O que está me jogo não é Francisco, não há torcedores de futebol, mas o julgamento sobre a Igreja", explica. "Parece que estamos vivendo um tempo de sede vacante (ausência de um papa) mais focado na dinâmica eclesial do que na relação entre Igreja e mundo."

Por sua vez, o vaticanista Silvonei José Protz — responsável pela Rádio Vaticano e pelo site Vatican News em português — afirma à reportagem que "o dilema entre a abertura e a ortodoxia não existe". "É uma questão que vem muito mais da imprensa do que de dentro do Colégio Cardinalício. O que pode ocorrer é que posições de certos cardeais sejam um pouco diferentes. Temos 133 cabeças pensantes. É difícil imaginar que todas elas pensarão de maneira igual", diz à reportagem.

Ele acredita que o perfil do próximo papa seja de continuidade do que foi o pontificado de Francisco, mas também terá que responder a certas exigências levantadas pelos cardeis nos últimos dias: uma Igreja profética, o olhar para o mundo, a paz, os problemas dos imigrantes e dos refugiados, o direito à vida. "São vários assuntos que se mostram um seguimento ao que o papa Francisco dedicou ao seu pontificado. A mesma coisa com Bento XVI e com João Paulo II. O que muda é o carisma de cada papa", acrescenta Silvonei. "A divisão entre mais ortordoxia, mais doutrina e menos pastoral não é bem assim, não. A gente quer ver uma Igreja bem mais presente no mundo e recordar a doutrina, e isso é absolutamente possível."

Do mesmo modo, dom Maurício da Silva Jardim, bispo de Rondonólis-Guiratinga, enfatiza que a Igreja dará continuidade ao pontificado de Francisco. "O Espírito Santo sempre nos surpreende, como ocorreu no último conclave, em 2013, ao eleger um papa latino-americano. Existem o papa das apostas e da mídia, e o real, que será eleito", lembra. Segundo ele, as reuniões das Congregações Gerais dos Cardeais foram decisivas para que os purpurados pudessem e conhecer melhor. "A tendências é de um pontífice europeu, depois de um da América Latina, mas não descarto a possibilidade de nomes de fora da Europa."

 

Eu acho...

"A questão está em aberto. Os cardeais estão mais dispersos do que divididos. Eles se conhecem pouco e ainda precisam se acostumar a trabalhar juntos e entender as visões um do outro. Se não houver um cardeal que receba muitos votos no curto prazo, eles serão forçados a chegar a um acordo, mas com quais critérios e bases?"

Roberto Regoli, especialista em história da Igreja Católica e professor da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma

Duas perguntas para

Dom Adalberto Martínez Flores, cardeal do Paraguai, arcebispo de Assunção e eleitor no conclave 

De que maneira o senhor encara a eleição do próximo papa?

Com muita esperança. Estamos no ano da esperança. Estamos aqui ante a porta do Jubileu, aberta pelo papa Francisco, enquanto estava na cadeira de rodas, em 2024. Este é um ano de muita esperança, apesar de termos perdido o papa Francisco, chamado pelo Senhor no dia seguinte à Páscoa. Somos cristãos, temos sempre muita esperança da vida eterna e cremos que o papa está no céu.

O senhor acredita que a Igreja seguirá o caminho aberto por Francisco?

Esperamos que sim, que possamos ir neste caminho. Ele abriu um caminho muito importante para a Igreja. Nesse sentido, temos esperança de que poderemos ter um sumo pontífice que continue o caminho aberto, Não será a mesma pessoa, mas, provavelmente, terá o carisma petrino (de Pedro), um carisma humilde, em um mundo tão necessitado de humildade. (RC)

Fiéis esperam um pontífice próximo ao povo

A espanhola Nieves Milán, 69 anos, integrante do Movimento Irmandades do Trabalho, descansava em um banco da Via della Conciliazone quando falou ao Correio sobre suas expectativas para o conclave e o futuro da Igreja. "Eu penso que a Igreja deve seguir um pouco a esteira deixada pelo papa Francisco. Foi um caminho de amor aos desfavorecidos, aos idosos e aos pobres. Quero um papa que se aproxime do povo, que se desloque até os bairros pobres, de pessoas desempregadas e sem comida, além de jovens que sofrem de abusos de todos os tipos", comentou. 

Nieves confia que a Igreja não adotará uma postura mais ortodoxa ou fechdada. "Francisco marcou um ponto de inflexão. Creio que é preciso termos uma continuidade, não podemos recuar, pois seria um mal muito grande", disse ela. Por sua vez, a colombiana Blanca Victoria Hernández, uma a de empresas  de 72 anos, disse à reportagem esperar quer Deus dê sabedoria aos 133 cardeais eleitores, para que perseverem na missão católica. "Quero que o próximo papa nos transmita a fé, a humildade e a caridade. Que seja um pontífice para a humanidade, com muito amor. Que seja um ser humano. Não tenho preferências, mas acho que será um italiano", arrisca um palpite. Ela espera um papa mais conservador, "para que a juventude volte aos seus caminhos, pois está muito dispersa".

Depois de visitar a Basílica de São Pedro, o comerciante carioca Roberto Abrantes, 59, afirmou ao Correio esperar que a Igreja continue sendo severa com crimes e "não faça vistas grossas com os erros que cometeu". Ele vê uma renovação da Igreja, com padres buscando uma seriedade "muto grande". "Acho que o catolicismo está crescendo, ao contrário do que as pessoas pensam. Espero que esse legado de renovação continue", acrescentou. No entanto, ele não descarta que um cardeal de linha mais conservadora assuma o comando da Igreja. 

O engenheiro peruano Grober Antagurco, 72, contou que mora na Itália há três décadas e que conhece a história de vários papas. "João Paulo II foi o melhor  pontífice, para mim. Francisco, um papa argentino, sul-americano, foi muito bom para nós. Ele lutou pelo cristianismo, para unificar o povo", lembrou. "Quem decidirá no conclave será o Espírito Santo. Dizem que será um italiano, mas espero que ele se expanda e cure o sofrimento de todo o mundo."  (RC)

  • O cardeal indiano Oswald Gracias:
    O cardeal indiano Oswald Gracias: "O Espírito Santo nos dará um homem adequado" Foto: Rodrigo Craveiro/CB Press
  • Dom Odilo Scherer chega para a missa na Basílica de São Pedro, na Cidade do Vaticano
    Dom Odilo Scherer chega para a missa na Basílica de São Pedro, na Cidade do Vaticano Foto: Rodrigo Craveiro/CB Press
postado em 05/05/2025 06:00
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