
ERICK DA ROCHA SPIEGEL SALLUM — Delegado de Polícia Civil do DF
O fenômeno conhecido como Jogo do Tigrinho tem dominado as manchetes em todo o país, especialmente devido às operações policiais, prisões e indiciamentos de influenciadores digitais por crimes, como lavagem de dinheiro, apologia ao crime, associação criminosa e contravenção de jogos de azar. Mas até onde se estende essa rede criminosa? E por que é tão difícil combater essa atividade ilícita em sua origem?
Para entender essa dinâmica, é essencial primeiramente reconhecer que o Jogo do Tigrinho não é uma marca exclusiva ou um software patenteado no Brasil. Trata-se de um aplicativo whitelabel explorado por diversos cassinos on-line. No Brasil, os jogos de azar são contravenções penais, conforme estabelecido pelo art. 50 do Decreto-Lei nº 3.688 de 1941. No entanto, sem uma regulamentação adequada e mecanismos tecnológicos repressores eficientes, os exploradores da indústria dos jogos, principalmente asiáticos, rapidamente identificaram o Brasil como um mercado promissor. Com efeito, durante a pandemia de covid-19, os cassinos on-line e as apostas esportivas proliferaram.
Em uma tentativa de conter os danos, a Medida Provisória n° 846 de 2018 abriu a primeira brecha para a legalização das apostas desportivas de empresas operando no país. Contudo, essa medida não afetou, significativamente, a ilegalidade, pois as grandes empresas de apostas continuaram operando sob a alegação de que suas sedes estavam fora do Brasil e, portanto, não estavam sujeitas à regulamentação nacional.
Essa MP foi, posteriormente, convertida na Lei nº 13.756, de 2018, que estabeleceu um prazo de dois anos, prorrogável por mais dois, para a regulamentação do setor. Em 2023, foi publicada a MP 1.182, que buscou fortalecer a regulamentação e proporcionar mais transparência aos apostadores, especialmente diante das suspeitas de manipulação de jogos.
Toda essa base normativa, contudo, nunca foi clara em relação aos cassinos on-line, tratando apenas das chamadas apostas desportivas. Nessa perspectiva, os cassinos on-line (e aqui reside o Jogo do Tigrinho) são, tecnicamente, exploração de jogos de azar e encontram-se no mesmo patamar do jogo do bicho. Contudo, como suas sedes são em lugares onde a legislação permite, o Estado brasileiro se mantém inerte, pois a ilegalidade é do explorador do jogo — ou seja, quem aposta não comete crime. Essa situação cria uma contradição: máquinas caça-níqueis em estabelecimentos locais são reprimidas severamente, enquanto os bilionários cassinos on-line asiáticos retiram divisas do país sem qualquer consequência.
Nessa perspectiva, o que se retira numa análise maior do Jogo do Tigrinho é algo bem mais sério. A soberania do Estado, entendida como poder de fazer cumprir suas leis dentro de seu território, está sendo desafiada pela internet, por novos arranjos de pagamento e por empresas com sedes em paraísos regulatórios.
Nesse contexto maior, é importante destacar algo que tem ado despercebido. Afinal, a sede desses cassinos on-line pode estar na Ilhas Cayman ou no Laos, mas os apostadores e o dinheiro estão no Brasil. Sendo assim, um ponto crucial e frequentemente ignorado é a questão de como o dinheiro dos apostadores brasileiros é transferido para esses cassinos internacionais.
Investigações têm demonstrado que algumas empresas de cassino on-line têm criado empresas de fachada no Brasil, ando-se por "instituições de pagamento". Essas instituições, não sendo bancos, podem receber e transferir dinheiro sem a mesma regulamentação rígida do Banco Central do Brasil.
Aproveitando-se de brechas no sistema, estrangeiros também podem comprar empresas brasileiras pré-constituídas (as chamadas shelf companies) sem nunca terem pisado no país. Depois disso, uma shelf company pode fazer uma subcontratação com outra instituição de pagamento brasileira que tem o indireto ao sistema Pix e fornece a ponta tecnológica a ser disponibilizada no website do cassino on-line. Esse mecanismo não apenas facilita o fluxo de dinheiro para fora do país, mas também alimenta novos golpes, como o uso de códigos Pix falsos para enganar as vítimas.
Se antes o imperialismo chegava às praias nacionais com caravelas e partiam cheias de riquezas, hoje o dreno é digital e gigantescamente maior. A evasão descontrolada da riqueza nacional pelos cassinos on-line e o empobrecimento da população pela exploração da impulsividade patogênica é um fator econômico-social a ser repensado. A ideia de "consumir com moderação" quando se trata de jogos é, no mínimo, uma hipocrisia que só serve aos bilionários proprietários das casas de apostas. Enquanto isso, a Polícia Judiciária tenta apagar o incêndio criado pelas próprias brechas abertas pelas falhas da fiscalização istrativa.
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