
Pouco mais de 11 anos atrás, em agosto de 2013, recebi a ligação de um assessor parlamentar. Algo corriqueiro para uma jornalista. Mas o motivo do telefonema não era sugerir uma pauta. "Você é neta do deputado Gervásio Gomes de Azevedo? O mandato dele será devolvido e gostaria de convidá-la para a cerimônia."
Mal podia acreditar no que estava ouvindo. Fazia exatos 50 anos que meu avô havia sido assassinado por motivos políticos. E, agora, eu estava sendo convidada para representá-lo. Ele foi cassado pelo governo de Eurico Gaspar Dutra em 1947, quando o Partido Comunista do Brasil (PCB) caiu na ilegalidade. Por essas estranhíssimas coincidências, a data da cerimônia estava marcada para 13 de agosto. O dia em que balearam o meu avô na barriga.
Aquele convite personificava, para mim, a Justiça. Minhas irmãs e eu crescemos com os relatos traumáticos de nossa mãe, que só conheceu o pai aos 5 anos, quando, enfim, ele pôde sair do autoexílio e voltar para casa. Ainda que sem nenhuma certeza de liberdade.
Durante todo aquele tempo, minha avó cuidou, sozinha, de três crianças. Não era a primeira vez em que Maria, uma jovem linda na casa dos 20 anos, de olhos tristes e vasta cabeleira preta, comandava o lar. O marido esteve na Segunda Guerra Mundial; foi como enfermeiro da Força Expedicionária Brasileira (FEB), um "ato de patriotismo" exigido pelo PCB. Voltou com neurose de guerra e, no pouco tempo de legislatura, apresentou diversos projetos em favor dos "pracinhas".
Volta e meia, porém, a força de repressão de Gaspar Dutra o jogava na cadeia. Um dia, encontrei, nos arquivos da Biblioteca Nacional, uma matéria publicada na década de 1940 no jornal O Estado de São Paulo, em que o repórter narra as torturas às quais meu avô foi submetido nos porões da polícia política do general. Não consegui ler tudo, as descrições eram dolorosas demais.
Meu avô era comunista, mas não "cozinhava criancinhas" na água fervente; não era a favor de que as famílias perdessem seus lares; e muito menos pegou em metralhadoras para defender seus ideais. Longe disso, apostava em outra arma, a da educação. E foi por alfabetizar trabalhadores rurais e informá-los sobre seus direitos que, em 13 de agosto de 1963, um conhecido proprietário de terras de Valença (RJ) mandou matá-lo. Ninguém jamais foi punido. No ano seguinte, uma "revolução" condenaria o Brasil a um período de terror.
Ontem, finalmente assisti a Ainda estou aqui. Na cena em que Eunice recebe o atestado de óbito do marido, Rubens Paiva, pensei em como minha mãe adoraria ter participado da devolução do mandato de Gervásio. Mas ela, que a vida toda sofreu com as injustiças do ado, morreu de câncer, quatro meses antes.
O cinema estava lotado, principalmente, de jovens, nascidos num país redemocratizado, livre. Como foi bom vê-los aplaudindo e gritando vivas ao fim do filme. Eles não estavam aqui nos anos de trevas da ditadura militar. Mas, com fé, garantirão que, não importam as tentativas golpistas, ninguém, jamais, esteja lá novamente.