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É o fim da era do dólar?

A nova política tarifária do governo dos Estados Unidos tem causado grande pânico sobre os mercados no mundo todo e produzido uma enorme volatilidade em preços financeiros

"Desde o fim do regime de Bretton Woods, em que foi sepultado o padrão dólar-ouro e estabelecido o regime de câmbio flutuante, a moeda americana galgou o posto de padrão monetário internacional, o que gerou assimetrias nas relações monetárias entre países" - (crédito: Caio Gomez)

BENITO SALOMÃO professor do Instituto de Economia e Relações Internacionais (IERI-UFU)

 

Na última semana, a conjuntura de curto prazo piorou nitidamente. A nova política tarifária do governo dos Estados Unidos tem causado grande pânico sobre os mercados no mundo todo e produzido uma enorme volatilidade em preços financeiros. Desde o fim do regime de Bretton Woods, em que foi sepultado o padrão dólar-ouro e estabelecido o regime de câmbio flutuante, a moeda americana galgou o posto de padrão monetário internacional, o que gerou assimetrias nas relações monetárias entre países.

A teoria monetária de Keynes (1936), pautada na hipótese da pPreferência pela liquidez, trata a moeda como um ativo demandado por agentes econômicos pelas razões: i) transacional, a moeda é demandada para liquidar transações econômicas quaisquer; ii) precaucional, isto é, num contexto de incertezas, a moeda deve ser demanda para além das necessidades transacionais, a fim amortecer os impactos de choques adversos e; iii) especulativa, que trata a moeda como um ativo que concorre com outros ativos líquidos e ilíquidos como parte dos portfólios de agentes. Neste mundo, a moeda deve ter funções adicionais para além de um mero meio de troca, deve ser também uma unidade de conta e uma reserva de valor.

Embora, originalmente, a teoria Keynesiana da moeda tenha sido pensada para um contexto nacional, ela pode ser facilmente estendida para a relação entre países, como muito bem demonstrado por De Conti, Prates e Plihon (2010). Como bem argumentam os autores, uma moeda pode exercer, em escala global, a função de meio internacional de trocas, unidade internacional de contas e reserva internacional de valor. Em alguns momentos da história, alguns esforços foram feitos a fim de construir um padrão monetário internacional supranacional, cuja oferta monetária não fosse controlada, individualmente, por um único país. Tais esforços, no entanto, não resultaram em efeitos práticos e o dólar americano ocupou, desde então, este espaço.

Inúmeras consequências surgem da adoção internacional de um padrão monetário que seja nacional. Em primeiro lugar, as condições de liquidez internacional am a estar subordinadas aos objetivos da política monetária de um país específico, no caso, os Estados Unidos. "O dólar é nossa moeda, mas é vosso problema", frase atribuída a John Connally, então secretário do Tesouro dos EUA no início da década de 1970 e que expressa bem a condição de subordinação das condições de liquidez internacional a objetivos domésticos de uma única nação.

Na saída da crise de 2008, quando a taxa de juros do Federal Reserve (FED) chegou próxima a 0% (fenômeno conhecido na literatura como zero lower bound), e os efeitos daquela recessão geraram fortes temores de deflação nos EUA, mecanismos de política monetária não convencionais foram postos em prática para estimular a recuperação econômica. Entre eles, os famosos Quantitative Easing (QE),  isto é, a compra de ativos "podres" do sistema bancário americano pelo FED, financiada pela expansão do seu ivo, o que significava emissão de moeda na prática. Ao todo, as emissões monetárias daquele período chegaram à casa dos US$3 trilhões e dado que o dólar é um padrão monetário internacional, parte dessa expansão monetária transbordava para outros países, gerando apreciação cambial em quase todo o mundo. Na época, autoridades brasileiras acusaram os EUA de produzirem uma guerra cambial.

Uma outra consequência de um sistema monetário internacional cujo dólar é o ativo central denomina-se "Privilégio Exorbitante". Se qualquer nação do mundo opera sistematicamente com deficits em Transações Correntes (TCs), de duas uma: ou haverá depreciações cambiais visando desestimular importações, ou expansão dos juros domésticos acima dos juros internacionais, a fim de atrair capitais para financiar o deficit. Essas consequências são impostas a todos os países, exceto aos EUA que podem financiar os seus deficits em TCs com emissão de dólares, uma vez que sua moeda é demandada por outros países como Reservas Internacionais. A ausência de restrições externas nos EUA é o que se chama de "Privilégio Exorbitante".

Esse privilégio exorbitante, que colocou a moeda americana no centro das relações econômicas internacionais, foi o que permitiu décadas de deficits acumulados nas relações comerciais entre EUA e Ásia. Um arranjo estruturado em uma divisão clara,  pelo qual a Ásia produzia e exportava para os EUA que consumia acumulando deficits. Agora, diante da guerra tarifária, que na prática parece significar a renúncia dos EUA ao seu privilégio exorbitante, é possível que o mundo esteja diante do início de uma ruptura com esse arranjo financeiro internacional onde o dólar exerce hegemonicamente o papel de reserva de valor. Essa história ainda está a ser contada.

 

Por Opinião
postado em 10/04/2025 06:00
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