
Raul Jungmann — ex-ministro da Reforma Agrária, da Defesa e da Segurança Pública. Diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram)
Mal refeitos do impacto da série Adolescência — já na casa dos 100 milhões de visualizações em 71 países —, no maior fenômeno de audiência da plataforma de streaming, o país toma conhecimento de uma nova tragédia escrita e desenvolvida no mundo virtual.
Trata-se da morte da menina Sarah Raíssa de Castro, de 8 anos, após inalar desodorante em um desses enredos que viraram rotina na internet, em que crianças e adolescentes perdem a vida em apostas bizarras — ou mesmo tiram a vida de outros, como registra a própria série, da forma mais banal possível.
Talvez esteja aí o ponto central desse processo da era tecnológica: a substituição gradativa da convivência presencial pela comunicação virtual, que nos faz todos indivíduos apartados da sociedade como a conhecemos e vivemos por séculos. O senso de coletividade, os limites racionais, a incapacidade crescente de distinguir o real do virtual foram pouco a pouco subtraídos das novas gerações.
O plural aqui empregado é intencional para alcançar não apenas as crianças e os adolescentes de agora, mas para incluir os pais, em grande parte também formados na era pós-internet, que demonstram despreparo para lidar com os filhos nessa nova era.
Vivemos a era da família virtual, em que um mesmo núcleo é capaz de morar sob um mesmo teto sem que seus integrantes em dias sem falar ou conversar. Não por outra razão, o ator Stephen Graham, criador da série, que vive nela o patriarca amargurado pela tragédia em que o filho mata uma colega de escola, define seu objetivo como uma forma de tentar iniciar um diálogo entre pais e filhos.
A questão torna-se geracional porque, até o surgimento da internet, tínhamos, por assim dizer, três certificadores da verdade credenciados pela sociedade: a Igreja, a ciência e a imprensa. Com o advento do mundo digital, essas bússolas perderam autoridade social e, com elas, as referências morais, científicas e informativas deram lugar a uma Torre de Babel.
Pais orientados por uma corrente da psicologia, cuja essência é a de blindar os jovens de frustrações e contrariedades, trocando limites por liberdade absoluta, eliminando a noção de atos e consequências, acabam reféns dos filhos e, não poucas vezes, personagens das tragédias que provocam.
Essa omissão os coloca, num contexto hierárquico, como os principais agentes da degradação familiar. Ao se omitirem do intransferível dever de acompanhar o crescimento dos filhos, terceirizam sua formação a anônimos que entram em suas casas, com o aval de um conceito de privacidade infundado.
Em um segundo plano, temos a responsabilidade do Estado, que exibe grande despreparo para o desafio de reverter esse quadro. Sem capacidade preventiva, fica a reboque dos acontecimentos, em atitude reativa, permanentemente exposto ao repertório de novidades das plataformas.
A proibição de uso dos celulares nas escolas é uma das raras iniciativas fora do padrão policial que já deveriam ter sido tomadas pelas próprias instituições de ensino, o que a faz também reativa. Mas, sobretudo o monitoramento do uso do celular, em que se inclui o acompanhamento seletivo do que os filhos am, é essencialmente da família, novamente flagrada em estado de omissão.
O o livre de indivíduos, grupos ideológicos e núcleos criminosos aos jovens enclausurados em seus quartos, pais subjugados por um falso conceito de liberdade e um Estado analógico, além da irresponsabilidade das big techs, ávidas de lucros, formam o conjunto de uma obra macabra.
É preciso que as famílias se conscientizem da gravidade da situação. As investigações de crimes cibernéticos mais recentes comprovam que, para além da sociopatia, o financiamento e a remuneração pelo crime estão presentes na adesão de jovens aos scripts de violência de toda a sorte. Ou seja, não mais apenas a busca de status, poder e superioridade leva ao cometimento, não menos terrível, de automutilações, maus tratos a animais, exibicionismo e bullying, que compõem a tragédia social da era digital.
A esse quadro se somam, já há algum tempo, crimes como tentativa de homicídio, indução ao suicídio, pornografia infantil, apologia ao nazismo e outras formas de supremacismo e crimes de ódio.
O fato é que o livre trânsito desses conteúdos nas redes sob a omissão dos pais criou um cenário devastador que já atravessou a fronteira do social para tornar-se um drama de segurança das famílias e da coletividade.
Recente pesquisa encomendada pela revista Veja respalda essa necessidade. Por ela, um universo de 1.000 pais e mães de meninos e meninas entre 10 e 18 anos atesta que a atividade virtual é a mais buscada pelos filhos jovens: 48% a põem no topo das preferências e apenas 6% escolhem encontros presenciais com os amigos.
É quando filhos am a dar ouvidos a vozes que entram em suas casas à revelia da família.