
JOSÉ HORTA MANZANO, empresário
Houve um tempo em que afronta se lavava com sangue. Era assim entre iguais, entre aqueles que, mesmo em oposição, se reconheciam mutuamente como dignos do duelo. A honra ultrajada exigia reparação imediata, e essa lógica imperava entre nações soberanas quando sua dignidade era colocada em xeque. Mas os tempos mudaram, ao menos para alguns.
Há alguns dias, o Brasil foi alvo de uma afronta inável, de dimensões diplomáticas e institucionais alarmantes. O Secretário de Estado dos Estados Unidos declarou ser "muito provável" que o ministro Alexandre de Moraes, integrante da mais alta Corte do Judiciário brasileiro, venha a ser sancionado formalmente pelo governo norte-americano. Não se trata de uma crítica. Trata-se de uma ameaça concreta, com consequências graves e pessoais.
A sanção mencionada carrega implicações profundas, não apenas simbólicas, mas materiais: congelamento de bens sob jurisdição americana, bloqueio de cartões de crédito com bandeiras dos EUA, fim da concessão de visto de entrada no país, proibição de negociações com empresas e cidadãos americanos e até a suspensão de perfis em plataformas digitais de empresas sediadas em solo estadunidense, como Google, YouTube e outros serviços da mesma família corporativa. Trata-se, em suma, de uma exclusão sistemática da vida globalizada moderna — um banimento que ultraa fronteiras físicas e se infiltra no quotidiano digital.
Ora, qualquer cidadão minimamente atento deveria ter se perguntado: que país é esse que vê seu magistrado supremo, no exercício de suas funções, ser ameaçado de forma tão insolente e explícita, e apenas debate os danos pessoais que a sanção pode acarretar ao ministro?
Porque o cerne do problema não é o indivíduo Alexandre de Moraes, mas o que ele representa. O alvo é o Supremo Tribunal Federal (STF). É o Poder Judiciário. É, por extensão, a soberania do Estado brasileiro e a dignidade institucional de todos os seus cidadãos. A ofensa ultraa o homem e atinge a estrutura da República .Por meio de Moraes, é o Brasil que se vê retratado como indigno, como país sem lei ou ordem legítima, sujeito à tutela moral e política de outra nação.
Não é necessário simpatizar com o ministro, nem endossar todas as suas decisões — o debate democrático permite crítica a qualquer autoridade pública. Mas há uma linha que não pode ser cruzada sem que haja consequências, ao menos morais: a linha da submissão silenciosa a um insulto dessa magnitude. Quando uma potência estrangeira cogita sancionar um membro do Judiciário de outro país por suas ações no exercício da função, o que se está dizendo, de maneira tácita, mas eloquente, é que aquele país já não é considerado par. É um satélite, uma colônia errante no século 21.
No entanto, estamos de mãos atadas. As ferramentas de que dispomos para reagir são poucas e limitadas. Um protesto diplomático, talvez a convocação de nosso embaixador em Washington. Nada que realmente reverta o quadro ou restabeleça o equilíbrio. Entre iguais, lavava-se afronta com sangue. Não é mais o caso entre Brasil e Estados Unidos. Não temos os meios para enfrentar de igual para igual a potência que nos agride. Somos, neste momento, a parte fraca da equação.
Mais do que nunca, isso nos obriga a uma reflexão incômoda: que imagem temos projetado ao mundo? Que tipo de país somos, afinal, se aceitamos calados o rebaixamento institucional de nossas autoridades? A hostilidade americana não surgiu do nada — é sintoma de uma desordem mais profunda. Um país que se dobra internamente diante de chantagens, desinformação e golpismo não pode esperar respeito externo. De tanto brincar com coisa séria, fomos parar de cabeça pra baixo no centro de um mapa-múndi invertido.
A única atitude que nos resta é seguir adiante com firmeza institucional, sem recuar diante da pressão externa, sem hesitar em cumprir os ritos democráticos. O STF, encabeçado por ministros designados segundo o devido processo constitucional, precisa manter sua autonomia e levar até o fim o julgamento dos envolvidos na ousadia criminosa do 8 de Janeiro. Não se trata de vontade política — trata-se de dever institucional.
A integridade da República está em jogo. E embora não possamos lavar essa afronta com sangue, ainda podemos — e devemos — lavá-la com dignidade, coerência e firmeza democrática.