
Da internação de Tancredo Neves, em 14 de março de 1985, por conta da primeira cirurgia, à morte 40 anos atrás, em 21 de abril de 1985, foram 39 dias nos quais o país acompanhou, com a respiração suspensa, o drama do presidente eleito e os esforços para que, em algum momento, ocue o gabinete do terceiro andar no Palácio do Planalto — coroação de uma trajetória política que começou, em 1946, como deputado estadual, em Minas Gerais. Sete operações em um homem de 75 anos, sendo que a segunda, ainda em Brasília, não era preciso. As cinco que se seguiram, em São Paulo, foram tentativas malsucedidas de evitar o desfecho contra o qual lutou-se tanto.
No boletim da primeira cirurgia, de 15 de março e emitido às 4h32, os médicos que o assinam — Renault Mattos Ribeiro, Francisco Pinheiro Rocha e Gustavo Arantes — afirmam que Tancredo foi operado "de um quadro abdominal agudo", cujo "diagnóstico foi de Divertículo de Meckel com abscesso em formação. O ato cirúrgico transcorreu sem anormalidades". Houve, sim, uma anormalidade: a quantidade de pessoas dentro do centro cirúrgico — exatamente 34 —, que incluiu até mesmo Antônio Carlos Magalhães, que era médico de formação, embora estivesse ali como deputado pela Bahia.
Apesar de o boletim da cirurgia assegurar que tudo transcorrera normalmente, houve dois problemas gravíssimos. O primeiro, de informação. Não era um Divertículo de Meckel, mas, sim, um leiomioma (tumor benigno) ou, na observação do cirurgião Gustavo Ribeiro — convidado por Pinheiro Rocha para acompanhar o procedimento —, um leiomiossarcoma (tumor maligno). Com a aquiescência da família, os médicos decidiram dourar a pílula por dois motivos:
1) A equipe de saúde acreditava que a palavra "tumor" assustaria, por estar associada ao câncer. Não quiseram correr o risco de causar profunda comoção pública;
2) O momento político crítico. Receava-se sobre a postura dos militares.
O segundo problema do boletim médico era a garantia de que a operação fora um sucesso. Longe disso. Uma das irmãs de Tancredo, Ester, que era enfermeira padrão, confidenciou ao sobrinho e futuro ministro da Fazenda, Francisco Dornelles, que a situação se agravara.
"Chico, mataram o Tancredo", avisou.
"Não diga isso", respondeu Dornelles, incrédulo.
"Mas é verdade, mataram o Tancredo. O médico fez tudo errado. Ele fez uma demonstração para a assistência", reforçou Ester, referindo-se a Pinheiro Rocha. O diálogo está registrado em Sarney, a biografia, da jornalista Regina Echeverria.
O ex-presidente confirma a versão, e dá mais detalhes sobre o fracasso operatório, em relato de 2015: "Pinheiro Rocha acha um tumor benigno, 'um leiomioma pedunculado necrosado em abcesso, a cerca de 50cm da válvula ilíaca'. Remove-se o tumor. É uma operação difícil. Quinze vezes tenta o anestesista introduzir uma sonda gástrica. A pressão e os batimentos cardíacos de Tancredo oscilam. Sofre muito. Tem uma paralisia respiratória: 'Dispneia intensa e progressiva, grande agitação para respirar'. Faz um edema pulmonar agudo, começa a entrar em choque. Os doutores Rocha e Renault, chamados, voltam correndo. Falavam à imprensa que a operação fora um sucesso. Os anestesistas lutam desesperadamente para recuperá-lo. Ele ressuscita. Irmã Ester, irmã de Tancredo, diz a Dornelles: 'Tancredo morre'." Os anestesiologistas eram Edno Magalhães (chefe), Maria Fátima Padilha, Francisco Ramos e Adonái Costa — conforme Luis Mir, em O Paciente — O Caso Tancredo Neves.
A ressecção
Surge, aqui, uma grande discussão entre os médicos que acompanharam a cirurgia de que o tumor foi extirpado de forma equivocada, com uma "ressecção em V" — ou em cunha, tal como decidido por Pinheiro Rocha. Isso é considerado um dos pilares para o agravamento do quadro de Tancredo, como explica Luis Mir na investigação que realizou.
"O critério cirúrgico para o que fora encontrado, estabelecido à época tanto para formas malignas como benignas, era a enterectomia ampliada (ressecção segmentar). Consensual que a retirada do segmento intestinal contendo a lesão não deveria ser feita em V (cunha), descartada tanto pela possibilidade de malignidade como, também, pela presença de vasos calibrosos e anômalos remanescentes próximos à base de implantação do tumor. Podiam ocorrer hemorragias pós-operatórias catastróficas. Como ocorreram", expôs Mir.
Ainda segundo O paciente — O caso Tancredo Neves, Aluísio Toscano Franca (1º cirurgião auxiliar e chefe da UTI do Hospital de Base) e Felipe Nery (2º cirurgião auxiliar) teriam ponderado com Pinheiro Rocha sobre o corte feito, em uma região hipervascularizada, para a retirada da parte adoecida. O cirurgião chefe nega que ambos o tenham abordado. Mas a contraindicação à "ressecção em V" é compartilhada por Wilson Pollara, cirurgião da equipe do médico Henrique Walter Pinotti, que começou a cuidar de Tancredo ainda em Brasília.
No livro de Luis Mir, Gustavo Ribeiro afirma que observou o tumor retirado de Tancredo, colocado numa cuba próxima a ele. Pelo que percebeu, era maligno, um leiomiossarcoma, pois operara três, recentemente, de pacientes que sofriam com o problema. E o fizera com ressecção segmentar.
"Comentei com o deputado Carlos Mosconi e com o senador Mário Maia (ambos médicos), que estavam junto de mim. Depois, aproximei-me de Pinheiro e sugeri, sem que fosse ouvido pelos demais: 'Talvez seja até um leiomiossarcoma'. Ele simplesmente respondeu com um 'OK'", registra Luis Mir.
Pela descrição que faz no livro, "devido ao tumulto na sala de cirurgia durante o ato cirúrgico, o anestesista Edno Magalhães quer terminar o quanto antes a anestesia". Tal manobra, porém, é complexa, sobretudo quando se tem na mesa um homem idoso submetido a uma longa intervenção, com perda sanguínea e necessitado de reposição do volume que dispendera — elementos que potencializam o risco de uma trombose venosa profunda e de embolia pulmonar. Luis Mir relata que o tempo de sedação estava quase no fim, mas Toscano Franca e Nery ainda não tinham fechado a parede abdominal de Tancredo. Nessa etapa, o anestesista "descurariza o presidente, retira o tubo orotraqueal (permite a conexão do ventilador mecânico com os pulmões). O paciente não consegue respirar espontaneamente e tem edema pulmonar por pressão negativa (esforço de expansão pulmonar). Os dois cirurgiões se desesperam e pedem para que ele mantenha a anestesia para que possam acabar a cirurgia" — o trecho é da página 126 do livro O paciente — O caso Tancredo Neves.
Luis Mir prossegue: "O edema teve instalação catastrófica, com dispnéia intensa e progressiva, grande agitação do presidente na tentativa de respirar, com secreção pulmonar abundante, às vezes sanguinolenta, decorrente de obstrução das vias aéreas superiores (VAS) após a extubação traqueal". É quando Toscano Franca sai em disparada da sala de cirurgia e chama o cardiologista de plantão da UTI do HDB, Getro Artiaga de Lima e Silva. Voltam correndo e o especialista em coração percebe que Tancredo não respirava. Faz as manobras para salvar o presidente.
"Ele teve uma acidose mista, respiratória e metabólica. Chegou a ter um pH muito baixo. O coração quase chegou a parar, foi muito difícil. Ele fez um edema agudo de pulmão. Posso dizer que salvei o presidente naquela noite", afirma Getro, no livro de Luis Mir.
No primeiro dia do pós-operatório, apesar de algumas preocupações, Tancredo esteve bem. Inclusive, recebeu Ulysses Guimarães, com o qual conversou por aproximadamente 15 minutos — encontro testemunhado por Renault. À saída do HDB, o presidente da Câmara disse aos repórteres que lá estavam que sua "expressão tranquila" atestava a boa recuperação do presidente.
Mas, por volta das 22h de 16 de março de 1985, vieram as complicações. Tancredo vomita, põe a culpa na troca do chá que vinha tomando como alimentação pós-operatória — indicada por Pinheiro Rocha. Na madrugada do dia 17, tem uma gravíssima crise respiratória e é atendido com tratamento de urgência. Também apresentava perda de líquidos e hemorragia, levando ao aumento dos batimentos cardíacos e da frequência respiratória. Com distensão abdominal, o presidente tinha vômitos biliosos. Uma radiografia detectou o começo de pneumonia.
O quadro piora velozmente. Ainda no dia 17, Renault tem duas reuniões decisivas: a primeira, com os generais Leônidas Pires Gonçalves (ministro do Exército) e Ivan de Souza Mendes (ministro-chefe do Serviço Nacional de Informações/SNI), na casa do brigadeiro Octávio Moreira Lima (ministro da Aeronáutica), que também participa; e a segunda com Sarney, no Palácio do Planalto. Nesta, sugere que se crie uma junta médica para acompanhar Tancredo. O presidente em exercício deixa claro que não haverá restrição de recursos para amparar o presidente eleito.
Leva a proposta da junta médica à família de Tancredo, que concorda. Na noite daquele domingo, 17 de março, são disparados telefonemas para especialistas indicados por Renault, Pinheiro Rocha, Tancredo Augusto (filho do presidente), Aécio Neves (então secretário particular do avô) e Aloysio Neves (médico e primo de Tancredo).
Do Rio de Janeiro, vêm Jayme Landman e Lopes Pontes, indicados por Renault. De Belo Horizonte, Célio Nogueira e Wilson Luiz Abrantes — sugeridos por Pinheiro Rocha. E da capital mineira e de São Paulo, João Baptista de Resende Alves e Agostinho Bettarello, a pedido dos Neves. Henrique Walter Pinotti foi mandado pelo governador paulista Franco Montoro, por solicitação de Ulysses.
Se a relação entre os médicos não era de completa afinidade, com a junta médica sofre profunda fratura. Segundo Pinheiro Rocha, Pinotti desembarca dizendo que eram amigos e que, por isso, estava ali para ajudar — o cirurgião nega que fossem próximos, apesar de se conhecerem desde que fizeram um curso na França. A junta foi informada de que tratava-se de um tumor intestinal, mas todos concordam em sustentar a versão da diverticulite.
Cabeçadas
Na edição de 18 de março de 1985, do Correio Braziliense, fica claro que a piora na saúde do presidente não era mais segredo. Manchete da página 3: "Tancredo enfrenta problemas em sua recuperação — Boletins médicos são contraditórios. Mas Aécio garante que o avô está bem e de ótimo humor". O entorno do presidente eleito dá cabeçadas com declarações desencontradas.
No boletim lido às 20h50 pelo porta-voz da Presidência, o jornalista Antônio Britto, afirma-se que "o estado de saúde do presidente, depois do resultado das radiografias feitas à tarde do tórax e do abdome, é satisfatório". Porém, o filho Tancredo Augusto relatou à imprensa que encontrou o pai, por volta das 18h30, "aparentemente muito bem, com bom-humor e conversando normalmente". Já Aécio, que disse ter estado com o avô pouco depois, pelas 19h, afirmou que o estado de saúde era bom, "inclusive bem melhor do que ontem".
Os médicos também não se acertam nas versões. Renault dissera aos jornalistas de plantão, por volta das 18h30, que Tancredo estava com um princípio de pneumonia e negou que fosse um edema pulmonar. Às 19h, Pinheiro Rocha afirma exatamente o contrário: "Ele (o presidente) não tem pneumonia de forma alguma. Acabo de estar com ele. Estava sentado, conversando e muito bem-humorado. Não há anormalidade", assegurou.
Em 19 de março de 1985, a situação de Tancredo segue piorando. O abdome continua distendido, não há movimentos intestinais — apenas quando estimulados —, vomita e os pulmões estão infiltrados, conforme mostram as radiografias de tórax. Luis Mir frisa que o presidente eleito não voltou a se alimentar do dia da operação até o da morte. "Se há consenso estabelecido de que os médicos não deveriam ter forçado o retorno do peristaltismo, também há consenso de que ele se tornou um desnutrido crônico, com todas as consequências disso decorrentes para o organismo de um paciente idoso em pós-operatório complicado. Ele foi um dieta zero desde o pós-operatório imediato até o final", salienta, na página 157 do seu livro. Além disso, as tentativas de agem de sonda machucaram Tancredo internamente e aumentaram o sofrimento.
Mas não era apenas a saúde do presidente eleito que deteriorava. O relacionamento entre os médicos também. Pinotti montou sua própria equipe, que trabalhava em paralelo à de Pinheiro Rocha e Toscano Franca. Chamou Wilson Pollara, Ivan Ceconello, Luiz Tarcísio Filomeno, José Eduardo Monteiro da Cunha, Telesforo Bachella e Bruno Zilberstein para compor o time. A única indicação de que o presidente poderia sofrer nova intervenção foi dada pelo ministro das Relações Exteriores, Olavo Setúbal: "O estado de saúde do presidente é mais grave do que ontem e uma nova operação dependerá da decisão dos médicos", disse, ao ser interpelado pelos repórteres à saída do HDB, conforme registrado na página 3 do Correio Braziliense de 20 de março.
Manchete daquele dia: "Rumores assustam, mas médicos dizem que Tancredo a bem — Junta examina o presidente e constata que ele só tem problemas no intestino". Não se falava em reabrir o paciente, mas avaliava-se o quadro institucional, incerto e tenso. Em artigo na página 3, o então editor de Política do Correio Braziliense, Armando Rollemberg, afirma que não se podia falar de posse diante de um quadro tão nebuloso. "adas as primeiras 120 horas da cirurgia, porém, o quadro clínico apresentado sugere uma reversão das expectativas. Mesmo que nada mais grave aconteça, o presidente dificilmente estará em condições de despachar nos próximos 30 dias", frisa.
Conflitos
Apesar da animosidade entre os integrantes da junta médica, é Pinheiro Rocha quem conduz a segunda cirurgia, que começa às 16h e termina pelas 19h45. A nova intervenção é motivada por uma divergência de diagnóstico — Resende Alves enxerga nos exames algo que os demais não viam, insiste na intervenção e o grupo concorda. Estava, porém, equivocado. Só que tal constatação fez-se apenas depois de aberto o paciente. Ou seja: não houve a necessidade de submeter Tancredo a tamanha exposição.
Ao contrário do primeiro procedimento, este de 20 de março é realizado na sala de operações do pronto-socorro, considerado um ambiente mais crítico do que o da cardiologia, local da primeira intervenção. Apesar de Pinheiro Rocha estar à frente da equipe cirúrgica, como um gesto de gentileza deixa para Pinotti o fechamento do abdome de Tancredo. Nesse momento, surge outro problema: o tipo de "costura" feita no presidente eleito pelo médico paulista — em "jaquetão". A sutura executada teria saído do centro de cirurgia já necrosada. Além disso, tal procedimento "subiu" o diafragma de Tancredo, que ou a ter problemas para respirar, segundo o anestesista Edno Magalhães.
Em 21 de março, na primeira página do Correio Braziliense, a dúvida sobre a necessidade do segundo procedimento: "Tancredo resiste à segunda operação — Médicos, políticos e familiares do presidente debateram a conveniência da cirurgia durante sete horas".
Segundo José Augusto Ribeiro, em Tancredo Neves — A noite do destino, não foi a conclusão da operação feita por Pinotti que azedou o relacionamento entre os médicos. O cirurgião paulista teria feito um comentário deselegante sobre uma questão técnica da primeira intervenção, conduzida por Pinheiro Rocha. Por causa disso, os dois, inclusive, por pouco não entram em luta corporal. Torna-se público que a junta médica rachara.
Até a madrugada de 25 de março, quando Tancredo teve uma severa hemorragia, apesar dos indicadores preocupantes, há algum otimismo. Fala-se em alta médica, posse e volta para casa. O presidente até promete a Pinotti, conforme depoimento que prestou ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo, em 1986, que trabalharia em ritmo lento e que, "na Semana Santa, eu o a receber um ministro por dia". Na noite de 24 de março, a equipe médica paulista participa de uma festa de despedida oferecida pelo ministro Fernando Lyra, da Justiça. Iria embora na manhã seguinte. Mas o telefonema de Pinheiro Rocha a Pinotti, de madrugada, acaba com a planejada volta para casa.
A foto
Havia, porém, um problema adicional: dar uma satisfação pública sobre a saúde de Tancredo. Estava bem? Estava mal? Não se sabia e a especulação corria. Era uma preocupação interna (da família, dos políticos e dos médicos) e uma cobrança externa (da imprensa e da sociedade). Decidiu-se que o presidente apareceria para pôr fim à boataria. Por volta das 11h do dia 25, é levado para a sala dos médicos no HDB, depois de preparada por d. Risoleta. É Antônio Britto quem conta, em Assim morreu Tancredo.
"O presidente vestiu o robe de chambre sobre o pijama e colocou uma echarpe para cobrir o pescoço, embora ali não tivesse nada. Ele tinha apenas duas sondas, uma de soro e outra de alimentação parenteral. Aí o presidente saiu de seu quarto, numa cadeira de rodas, acompanhado de d. Risoleta e enfermeira, que segurava os dois frascos de soro", lembra. E prossegue: "Eu, que só tinha visto o presidente entrando e saindo do centro cirúrgico, falei pela primeira vez com ele desde a internação. 'Como vai, Britto?', saudou-me. 'Tudo bem, presidente. Como vai o senhor? Vamos lhe incomodar um pouco', disse-lhe. Ele parecia mais pálido, cansado e um pouco inchado. O [fotógrafo] Gervásio Batista se emocionou muito ao vê-lo, e não se cansava de repetir: 'Mas, meu presidente, que bom lhe ver, meu presidente. Mas que bom!'. O dr. Tancredo se acomodou no sofá do centro, a enfermeira colocou os dois frascos de soro no chão, atrás do sofá, e saiu de cena."
Na foto, veem-se, da esquerda para a direita, Renault, Pinheiro Rocha, d. Risoleta (que, inicialmente, não quis aparecer), Tancredo, Resende Alves, Pinotti e Gustavo Arantes (diretor do HDB). O tórax do presidente está nitidamente inchado, mas sua expressão facial é boa. Gervásio tira várias fotos. "Quem se mostrava mais tranquilo era dr. Tancredo, que parecia estar gostando. 'Fiquem calmos. Façam o trabalho de vocês'. Ele conversava com o dr. Resende, ao seu lado, explicando: 'Isso é assim mesmo. Demora um pouco. Eles são muito cuidadosos'. E Gervásio insistia: 'Só um minuto, presidente'", relata Britto. A alegria daquele momento, porém, dura pouco. Tancredo sangra muito, enquanto as fotos se espalham na imprensa.
Embalado pelo otimismo, o Correio Braziliense dá como manchete na edição de 26 de março: "Tancredo deve assumir dia 21 — Data foi revelada pelo líder do PMDB na Câmara, Pimenta da Veiga. Aécio promete uma grande festa". O Dia da Inconfidência parecia premonitório e indissoluvelmente ligado à trajetória do presidente. Porém, naquela noite de 25 de março, uma reunião decide duas coisas: a primeira, que não se falaria mais em posse — determinação do ministro-chefe da Casa Civil, José Hugo Castello Branco; a segunda, que Tancredo iria para São Paulo.
São Paulo
O presidente chega à capital paulista por volta das 8h30 de 26 de março, levado em um avião inadequado — um jato da Presidência da República para transporte de autoridades. No voo, recebe várias bolsas de sangue. Após o desembarque, é removido imediatamente para o Instituto do Coração (Incor), onde se submete a uma cintilografia para determinar a origem do intenso sangramento — vinha da linha da sutura da primeira cirurgia. Tenta-se uma arteriografia para estancar a hemorragia, que fracassa. Levam Tancredo para a mesa de operação por volta das 16h45 e o terceiro procedimento dura, aproximadamente, 50 minutos. Dá certo, mas a condição geral é crítica.
A comoção popular que tomara Brasília muda de lugar. Até poucas horas antes, o HDB tornara-se local de romaria, de preces sentidas, de manifestações de apoio e de preocupação com a saúde de Tancredo. Agora, o santuário é o Incor. A população, que esperançosa e em silêncio fora receber o presidente eleito, em Congonhas, na sua última viagem vivo, manifestava toda aflição que sofria em frente ao local da internação. E rezava. E fazia correntes de vibrações positivas. E pedia a Deus pela vida daquele que reacendeu a esperança do brasileiro no futuro. Como no discurso da vitória, no Colégio Eleitoral, em janeiro daquele ano, todos aram a acreditar, profundamente, no que Tancredo propa ao país: "Não vamos nos dispersar. Continuemos reunidos, como nas praças públicas, com a mesma emoção, a mesma dignidade e a mesma decisão. Se todos quisermos, dizia-nos, há quase 200 anos, Tiradentes, aquele herói enlouquecido de esperança, podemos fazer deste país uma grande Nação".
Porém, a realidade era mais dolorosa, mais injusta. Com as notícias sobre o presidente eleito, um clima de eliminação do Brasil para a Itália, na Copa de 1982, desalentava a população. O véu da tristeza cobriu o país. Esperava-se, para qualquer momento, que um dos boletins lidos por Britto trouxesse o inevitável — que Tancredo partira. Os brasileiros anteciparam o luto. Aquela farra das Diretas Já e da vitória sobre Paulo Maluf, na eleição presidencial indireta, não tinha sido suficiente para alimentar, fosse quem fosse o presidente, a fé na inflação mais baixa, em mais empregos, em melhor qualidade de vida, em educação pública decente, em saúde abrangente, em impostos menores, em violência sob controle, em políticos corretos, em dinheiro público bem aplicado. Era preciso que Tancredo indicasse o caminho para se alcançar tudo isso.
Nos boletins ados por Britto ao mundo exterior, agrega-se uma palavra aparentemente desimportante, mas que é o pior inimigo que alguém pode enfrentar dentro de um hospital: a infecção. No combate à guerrilha de bactérias e virus, o infectologista Vicente Amato Neto. Desdobra-se para conter um adversário implacável e traiçoeiro, que concede ao paciente momentos de equilíbrio e, aos médicos, dribles humilhantes e brutais ofensivas.
A quarta cirurgia acontece em 2 de abril de 1985 — a razão foi uma hérnia. Reacende-se o otimismo na equipe médica. Antes, em 27 de março, o presidente em exercício José Sarney visita Tancredo. Veem-se de longe. O presidente eleito faz um sinal positivo com o polegar direito e, com o indicador esquerdo, aponta para a barriga. O substituto sorri, acena, manda um beijo fraterno e sai.
No dia 4, a quinta operação — desta vez para a drenagem de abscessos. A infecção não cede e as crises se sucedem. Os médicos, literalmente, suavam a camisa na tentativa de manter o controle: "Levavam de 30 a 40 minutos naquilo, chegavam a sair suados dali", lembra Britto. Ao final, Tancredo entra em choque, a pressão arterial vai quase a zero. A esperança dos médicos se abala.
Em 9 de abril, o presidente eleito submete-se a uma traqueotomia para a retirada de uma sonda. Era a sexta cirurgia. Apesar da simplicidade do procedimento, no pós-operatório o coração de Tancredo para. Onde quer que tenha estado naqueles minutos, o fato é que voltou à custa de muitas manobras cardíacas. A manchete do Correio Braziliense do dia seguinte: "Tancredo em estado gravíssimo — Presidente eleito sobrevive à pior crise (queda de pressão e taquicardia) após a sexta intervenção".
Para conter focos de infecção, realiza-se a sétima cirurgia. Sabia-se, porém, que a guerra estava perdida. "Tancredo em lenta agonia — Quadro é irreversível. Tancredo já se despede dos médicos. Desativação dos aparelhos será fatal", é a manchete do Correio Braziliense de 11 de abril. No dia 12, o jornal anuncia a derradeira operação, mas deixa claro: "Chances de sobrevivência são remotas. Decisão de operar é uma desesperada tentativa dos médicos".
Em 19 de abril, o Correio Braziliense alertava, na manchete: "Estado de Tancredo é desesperador". No dia 20, o especialista em infecção pulmonar Warren Zapol, do Hospital Geral de Massachusetts, na cidade norte-americana de Boston, examina Tancredo, a pedido de Pinotti. O veredicto apenas confirma o que se sabia: nada mais há a fazer, a não ser esperar o ar das horas.
Domingo, dia 21, a luz de Tancredo começa a se apagar. Os Neves reúnem-se, choram entre eles, trocam lembranças. D. Risoleta tenta, da melhor forma possível, aguardar o ponto final. O dia a e alonga o sofrimento. "Será ainda hoje?", perguntam-se todos.
O relógio aproxima-se das 22h30. Britto acomoda-se na cadeira e entra em cadeia nacional de rádio e tevê: "Senhores, por gentileza", pede aos jornalistas, que já sabiam o que seria anunciado a seguir. O comunicado é lido com voz firme: "Lamento informar que o excelentíssimo senhor presidente da República, Tancredo de Almeida Neves, faleceu esta noite, no Instituto do Coração, às 22h23. Acrescento o seguinte: nos últimos 50 anos, a vida pública de Tancredo Neves confundiu-se com os sonhos e com os ideais brasileiros de união, de democracia, de justiça social e de liberdade. Nos últimos meses, pela vontade do povo e com a liderança de Tancredo Neves, esses ideais se transformaram na Nova República. A emocionante corrente de fé e de solidariedade das últimas semanas, enquanto o presidente Tancredo Neves lutava pela vida, só fez crescer esse sentimento de união, que foi sempre ação, exemplo e objetivo de Tancredo Neves. Com a mesma fé, com a mesma determinação, o Brasil haverá, a partir de agora, de realizar os ideais do líder que acaba de perder — Tancredo Neves".
Britto levanta-se. Segue-se uma salva de palmas.
Manchete do Correio Braziliense de 22 de abril de 1985, uma segunda-feira: "Tancredo morreu. Deixou a esperança".Saiba Mais