Especial

Por que brincar também é essencial na vida adulta

Brincadeiras e jogos não precisam ser exclusividade da infância. Resgatar a criança interior e brincar pode trazer inúmeros benefícios na vida adulta

Felipe Lacerda não vê problemas em ter Lego sendo adulto  -  (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
Felipe Lacerda não vê problemas em ter Lego sendo adulto - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

Ao chegar à vida adulta, muitos jovens, sobretudo os millenials, costumam se comparar com a visão que tinham dos pais: então, é isso? Os adultos não sabem de tudo? Só vamos tentando fazer dar certo conforme os desafios aparecem? Ainda sentimos medo">permanecem carregando alguns traços da infância. Ainda precisam rir, divertir-se, de um colo para chorar e, veja só, brincar. 

A brincadeira, parte essencial da infância e como as crianças aprendem a viver e a navegar no mundo, não precisa ser deixada de lado só porque os anos se aram. Claro, o tempo livre não é mais o mesmo, mas exercitar o lado lúdico da vida pode ser fundamental para cuidar da saúde mental e do bem-estar. 

Sabe aquele sentimento de correr com os amigos, ficar esbaforido e rir sem se preocupar com as horas seguintes? Essa é uma das sensações que o grupo de amigos que criou a Keima Kengaral buscava quando começou a se reunir para jogar queimada. 

A artista visual e produtora cultural Nina Maia Nobre, 33 anos, costumava se perguntar por que as mulheres, assim como os homens com suas peladas semanais, por exemplo, não costumam ter tantos hobbies ou momentos na semana separados apenas para o próprio lazer. 

Em 2022, chegando aos 30 anos, começou a se incomodar também com a dificuldade que tinha em fazer novas amizades depois de adulta. Normalmente, o círculo de amigos é o mesmo desde o período de infância ou formado por colegas de trabalho, por exemplo. "Acabamos ficando em uma bolha. A gente perde um pouco aquela espontaneidade da criança, que convida outra para brincar assim que se conhecem no parquinho", reflete. 

E esse desejo, de voltar a conhecer pessoas de uma forma mais lúdica e natural, motivou ela e alguns amigos a se organizarem para jogar. A queimada não foi a primeira opção, pensaram no vôlei, mas a necessidade de quadra e de equipamento poderia atrapalhar. Em seguida, pensaram na queimada e no pique-bandeirinha, que curtiam na infância. 

O grupo começou com oito amigos. Mas desde o primeiro dia, muitas pessoas viram e começaram a se interessar, pedindo para participar. O Keima Kengaral foi crescendo e, hoje no WhatsApp, já são cerca de 200 participantes. Eles se reúnem toda terça-feira, na 415 Norte, e sempre tem alguém novo chegando.  "Uma coisa legal da queimada é que ela é democrática. Não é como um esporte em que você precisa ser bom, ter habilidade para jogar. É mais brincadeira e menos competição, e isso é mais convidativo", comenta. 

Nina, sentada na quadra de top e short pretos, com amigas nas edições iniciais da queimada
Nina, sentada na quadra de top e short pretos, com amigas nas edições iniciais da queimada (foto: Arquivo pessoal)

O grupo, inclusive, quis manter os ares inclusivos em toda a estrutura dos encontros. Os times não são escolhidos, evitando que alguém fique em último lugar e se sinta excluído, mas, sim, divididos por algum critério aleatório, como signos e mês de aniversário. Existem também regras contra qualquer tipo de discriminação e todos estão bem claros na descrição do grupo do WhatsApp. 

Outro aspecto da queimada é aceitar famílias com crianças. Nina explica que muitos pais e mães querem jogar e não têm com quem deixar as crianças, mas muitos as levam porque querem jogar com os filhos e dividir essa experiência, trazendo memórias positivas de suas infâncias para os pequenos. 

E o desejo de Nina de fazer novos amigos se realizou. E não só para ela, mas também para outros integrantes da queimada, que levaram as relações surgidas no jogo para outros aspectos da vida. 

Brincadeira como terapia

Nina acredita que as demandas da vida adulta, quando tudo parece mais importante do que encontrar um tempo para si, e as pressões sociais afastam as pessoas desse lado mais lúdico e da fantasia. "A brincadeira é coisa séria. As crianças levam a sério — e talvez a gente precise aprender com elas. Brincar faz parte de crescer no mundo, de continuar conectada com outras pessoas, de criar vínculos afetivos. Tornou-se essencial para eu me reconectar comigo mesma, com quem eu sou", completa. 

Ela observa que as atividades brincantes são mais uma forma de se descobrir no mundo, algo que vai além de todos os outros aspectos da vida e permite que, pelo menos por algumas horas, você seja apenas você, sem cobranças. 

O fisioterapeuta Thayran Pacheco, 34, também é um dos pioneiros do Keima Kengaral. Para ele, estar com os amigos e jogar algo que remete à sua infância se tornou parte inegociável da rotina. Além da queimada, Thayran curte jogos de baralho, de tabuleiro e pingue-pongue. Ele conta que sempre aparece algo novo que chama sua atenção, e ou a levar a brincadeira tão a sério que vive com algum jogo de cartas na pochete para não perder oportunidades. 

Além do lugar afetivo, que avalia como essencial, Thayran comenta que é possível perceber com facilidade todos os benefícios que a brincadeira pode trazer para a saúde. Tanto física quanto mental. Um pouco antes da pandemia, ele estava sofrendo com ansiedade e princípio de depressão, que se intensificou durante o isolamento. Quando a queimada começou, os encontros foram o ponto de partida para que ele abrisse espaço para o lúdico em sua vida. 

Além da atividade física, da medicação e da terapia, a brincadeira tornou-se parte da rotina de autocuidado. A queimada e os jogos são, hoje, um dos braços do processo terapêutico de Thayran, representando uma atividade que o faz se sentir bem. "Isso foi me resgatando, trouxe de volta a criança que nós nunca deveríamos abandonar. A criança que fomos é nossa essência, foi como experimentamos o mundo pela primeira vez", comenta. 

O clima de descontração e brincadeira é a essência do grupo
Nina e Thayran reforçam que o clima de descontração e brincadeira é a essência do grupo (foto: Arquivo pessoal)

E o lado de refazer os os da infância, para ele, é fazer coisas que não tinha coragem quando criança. Recentemente, aprendeu a nadar, e o medo que tinha de pular na água e de lugares altos vem sendo superado em função da diversão. 

Trabalhando com pacientes que sofrem de dor crônica, Thayran viu na brincadeira também uma maneira de ajudar outras pessoas. ou a indicar que os pacientes fizessem alguma atividade que envolvesse o físico, mas sem a obrigação de uma academia ou um esporte, e sim como lazer e brincadeira, algo dinâmico, que tivesse também o aspecto afetivo.  

Os benefícios foram claros e, hoje, o fisioterapeuta costuma perguntar o que seus pacientes gostavam de fazer na infância e pensar em alternativas de tratamento que envolvam esses requisitos.

Remontando na infância!

 

 20/05/2025. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil.  Brasilia - DF. Adultos que gostam de brincar e levam isso para o seu dia a dia. Felipe Lacerda com Lego.
20/05/2025. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF. Adultos que gostam de brincar e levam isso para o seu dia a dia. Felipe Lacerda com Lego. (foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

Felipe Lacerda tem 43 anos. Fã de Lego desde a infância, a paixão pelos brinquedos de construção feitos de peças de plástico que se encaixam e permitem criar inúmeras estruturas continuou a acompanhá-lo até a vida adulta. "Sempre gostei de brincar com eles, tenho diversas memórias legais com esse tipo de brinquedo. Quando era criança, tinha poucos, três no total. Dois deles guardo até hoje", conta.

Com mais de 15 peças em casa, sua coleção inclui desde personagens e carros até cidades inteiras. "As minhas favoritas, até então, são as cidades de São Francisco e Nova York." Seu último Lego é um ônibus espacial da NASA comprado em sua última viagem aos Estados Unidos, em abril.

Formado em engenharia de redes pela Universidade de Brasília (UnB), o brasiliense comenta que essas pecinhas famosas o ajudaram durante a infância e a graduação na faculdade. "O primeiro benefício que eu tive na infância foi o fato de desenvolver mais facilmente a minha visão espacial e tridimensional porque, no Lego, você lê um manual que é 2D e está montando as pecinhas no espaço tridimensional. Quando eu cheguei no segundo grau da minha faculdade e tive que fazer matérias de geometria tridimensional, foi muito mais fácil de entender."

A satisfação de ar esse gosto e aprendizado para os dois filhos, Pedro, 9, e Heitor, 6, é visível. "Eu sempre tive muito estímulo com esse brinquedo. A gente tem uma caixona de Lego — eu sei o valor que isso tem. É algo que traz diversão e aprendizado, tanto na infância quanto na vida adulta. Por isso, fiquei muito contente de conseguir ar esse gosto para os meus filhos. Saber que eles também curtem montar Lego me deixa muito feliz."

 20/05/2025. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil.  Brasilia - DF. Adultos que gostam de brincar e levam isso para o seu dia a dia. Felipe Lacerda com Lego.
20/05/2025. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF. Adultos que gostam de brincar e levam isso para o seu dia a dia. Felipe Lacerda com Lego. (foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

Apesar de gostar de brincar e de saber que os filhos também compartilham desse mesmo sentimento, ele enxerga outras utilidades para as peças. "Acho que, com o tempo, eles vão continuar apreciando o Lego de forma mais madura, como eu faço hoje. Atualmente, eles ainda desmontam e brincam com as peças, como eu fazia quando era criança. E tudo bem, eu também ei por essa fase. Mais tarde, na vida adulta, comecei a usar o Lego como parte da decoração da casa, com um valor afetivo muito forte."

Para Felipe, o Lego é muito mais do que um simples brinquedo — é um elo com a infância, uma fonte de criatividade e uma memória afetiva que atravessou gerações. Desde pequeno, ele se encantava com as possibilidades de criação que cada peça oferecia. Hoje, já adulto e pai, compartilha esse mesmo encanto com os filhos, mantendo viva a magia dos blocos coloridos. Mas nem tudo são flores no mundo dos Legos — como ele mesmo brinca. "A parte mais difícil do Lego, na verdade, são duas: primeiro, comprar — porque é um brinquedo caro — e segundo, pisar nas peças descalço... isso dói de verdade!"

 A ciência da brincadeira

As sensações positivas experimentadas por Felipe, Thayran, Nina e Denise não são apenas fruto da nostalgia. A ciência comprova os benefícios que a brincadeira pode trazer para o cérebro, mesmo o adulto. Diversos estudos mostram que jogos e atividades lúdicas ativam partes específicas do cérebro, que não são estimuladas em outras atividades. Além da sensação de bem-estar, o brincar auxilia no raciocínio, na imaginação e na memória. 

O psiquiatra do Hospital Santa Lúcia Norte Fábio Aurélio Leite comenta que adultos que exercem profissões que exigem mais criatividade são especialmente beneficiados pela brincadeira, que ajuda o cérebro a ter uma capacidade maior de associar ideias e imaginar. 

As relações, segundo Fábio, também são beneficiadas. Quando o adulto estimula o lado lúdico, ele não se leva tão a sério e consegue se divertir mais, sendo uma pessoa mais agradável. 

Muitas vezes, no entanto, a brincadeira pode esconder algo que precisa ser trabalhado no adulto, como tem se comentado muito com relação aos bebês reborn. Fábio explica que muitas pessoas podem tentar resgatar coisas que não viveram na infância e fazer compensações usando brinquedos, por exemplo.

Adultos que brincam têm mais criatividade e flexibilidade cognitiva
Adultos que brincam têm mais criatividade e flexibilidade cognitiva (foto: Reprodução/Deposit Photos)

Quando isso se reflete em um adulto comprando um brinquedo que sempre quis na infância, mas não pôde ter, ou brincando porque não pôde fazer isso enquanto crescia, porém não rompe limite ou atrapalha a vida adulta, é apenas uma maneira de lidar com aquele sentimento. 

O problema, segundo o médico, surge quando a brincadeira a a atrapalhar outros aspectos da vida e o motivo pelo qual o adulto busca fugir do mundo real não é tratado. Em alguns casos, a pessoa perde, inclusive, a noção entre o que é real e o que é ilusão, levando a fantasia para a realidade. 

A psicanalista Elainne Ourives também reforça a importância da brincadeira e afirma que o adulto precisa brincar. "Precisa rir, imaginar, cocriar, expressar-se livremente, porque isso ativa seu sistema de bem-estar interno, regula o sistema nervoso autônomo e desperta o hemisfério direito." 

A profissional explica que momentos lúdicos geram alívio emocional, estimulam o sistema de recompensa cerebral e criam um espaço simbólico de expressão criativa e subjetiva. Elainne acrescenta que a neurociência comprova que atividades lúdicas liberam dopamina, serotonina e ocitocina, promovendo bem-estar, sensação de segurança e prazer.

Mas, assim como Fábio, reforça que é necessário existir um equilíbrio. Se a brincadeira assume um papel compulsivo e com dependência emocional, precisa ser avaliada. "A brincadeira, nesses casos, perde sua função terapêutica e a a mascarar estados de dor psíquica profunda, como vazio existencial, depressão, carência não resolvida e traumas infantis não ressignificados", diz. 

Ela explica que, na psicanálise, esse comportamento é visto como formação substitutiva, ou seja, a pessoa cria um objeto simbólico para substituir aquilo que não teve na realidade. E se não bem trabalhado, isso pode se tornar parte de um ciclo de autoengano focado no escapismo. 

Dessa maneira, Elainne reforça que o lúdico é importante, mas é necessário que esteja ancorado em uma estrutura mental e emocional que possa sustentar o retorno para a realidade, evitando que a brincadeira vire um vício emocional. 

*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte 

 

  • Nina, sentada na quadra de top e short pretos, com amigas nas edições iniciais da queimada
    Nina, sentada na quadra de top e short pretos, com amigas nas edições iniciais da queimada Foto: Arquivo pessoal
  • Nina, sentada no centro e de verde. Conforme o tempo ava, o grupo crescia
    Nina, sentada no centro e de verde. Conforme o tempo ava, o grupo crescia Foto: Arquivo pessoal
  • Nina e Thayran reforçam que o clima de descontração e brincadeira é a essência do grupo
    Nina e Thayran reforçam que o clima de descontração e brincadeira é a essência do grupo Foto: Arquivo pessoal
  • Nina, sentada na quadra de top e short pretos e Thayran, de amarelo, nas edições iniciais da queimada
    Nina, sentada na quadra de top e short pretos e Thayran, de amarelo, nas edições iniciais da queimada Foto: Arquivo pessoal
  • O grupo continuou crescendo
    O grupo continuou crescendo Foto: Arquivo pessoal
  • Adultos que brincam 
têm mais criatividade 
e flexibilidade cognitiva
    Adultos que brincam têm mais criatividade e flexibilidade cognitiva Foto: Reprodução/Deposit Photos
  • Felipe Lacerda adora brincar com Lego
    Felipe Lacerda adora brincar com Lego Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  •  Felipe Lacerda possui vários tipos de Lego em casa
    Felipe Lacerda possui vários tipos de Lego em casa Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press
AC
postado em 25/05/2025 06:00 / atualizado em 25/05/2025 06:00
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