
ANA FLAUZINA, professora da Universidade Federal da Bahia, especialista em criminologia e relações étnico-raciais
"Ninguém no mundo, ninguém na história conseguiu sua liberdade apelando para o senso moral das pessoas que o oprimiam", nos ensina Assata Shakur, importante liderança negra estadunidense. Essa afirmação é fundamental para as disputas de narrativas que, até hoje, permeiam a abolição da escravidão e suas consequências no Brasil.
Para as elites, a estratégia sempre foi retratar o fim do regime escravista como uma concessão. Nessa visão, o 13 de maio simboliza resolução: enterrar o ado; negar a desigualdade racial no presente e projetar um futuro como miragem de justiça social.
Em contraste, a militância negra enxerga a escravidão como alicerce da estrutura social, cujo legado essencial é o racismo: o grande dilema político da nação. Aqui, o 13 de maio representa conflito. É preciso reconhecer as atrocidades do ado; assumir o racismo como base da desigualdade para, só então, vislumbrar algum nível de conciliação no futuro.
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A educação é, sem dúvida, trincheira central desse embate. Após décadas de luta, a Lei 10.639/2003 tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, marcando uma vitória da resistência negra. No entanto, mesmo após 20 anos, sua implementação ainda é um desafio.
O cenário atual revela o despreparo das escolas para abordar questões étnico-raciais. Muitas vezes, o tema é reduzido a datas comemorativas, cumprindo-se a lei de forma protocolar. Falta um esforço em construir um currículo engajado no enfrentamento do racismo, com uma perspectiva crítica que, de um lado, valorize o legado civilizatório africano para a edificação do Brasil e, de outro, evidencie como a violência contra pessoas negras segue vigorosa no país.
Contra essa tendência, surgem iniciativas que centralizam o debate racial nas escolas, como o projeto O racismo no banco dos réus, que usa a arte-educação jurídica como forma de abrir novos horizontes.
O projeto adapta, em formato teatral, a história real de Francisco — o último escravizado condenado à pena de morte no Brasil, em Pilar (AL), em 1876. A atividade começa com atores e atrizes profissionais encenando seu julgamento, seguida por uma oficina interativa. No júri simulado, os(as) estudantes assumem o papel de jurados. Após a apresentação, debatem o caso e decidem o veredito final — absolver ou condenar Francisco. Assim, tornam-se protagonistas do desfecho dessa história.
Apoiado pelo Fundo de Apoio à Cultura do DF (FAC), o projeto circulou por três escolas públicas de ensino médio do Distrito Federal em 2024, com resultados promissores. O alto engajamento dos participantes com os temas jurídicos elencados — desde processos históricos até questões atuais — evidencia a necessidade de expandir iniciativas como essa.
A questão das abordagens policiais truculentas, por exemplo, emergiu com frequência nos debates, principalmente entre estudantes negros. Essa inquietação permitiu tratar de problemas estruturais, como os dados alarmantes do Anuário de Segurança Pública 2024 que indicam que 26,2% das mortes de policiais em 2023 ocorreram por suicídio. No caso dos policiais militares, em sua maioria negros, houve mais mortes por suicídio do que por confronto, tanto na folga quanto em serviço. Esses dados provocaram reflexões e levantaram perguntas fundamentais: Quais são as reais condições de trabalho das polícias no Brasil? Que tipo de formação esses profissionais recebem? Como a imposição de uma performance de masculinidade violenta afeta sua atuação profissional e vida pessoal? O que significa, afinal, ser um policial negro num país estruturalmente racista?
Essas problemáticas — que conectam o direito ao cotidiano da juventude negra — são fundamentais para efetivar a Lei nº 10.639/2003. Como forma de estimular docentes e alunos a aprofundarem esse processo formativo, foi criada a plataforma educabradonegro.com, com materiais didáticos, referências bibliográficas e questões de vestibular relacionadas ao projeto. Afinal, se o 13 de maio simboliza o maior conflito social do país, é preciso investir em projetos inovadores — especialmente no âmbito da educação. Só assim, podemos abrir caminhos para uma nova ordem social efetivamente justa e igualitária.